sábado, 19 de setembro de 2009

À Sombra dos Radares [Rafale II]


Os EUA adotaram, em setembro de 2009, uma ‘nova arquitetura de defesa’ contra o Irã, ao cancelar o 'escudo antimíssil' no Leste Europeu e substituí-lo por radares, sensores e interceptores. Assim, Clóvis Rossi indagou na F. São Paulo [18/09/2009] se não seria mais interessante que submarinos e aviões que o Brasil quer comprar [?]. A questão é o que se promete com o Rafale, que ele pode driblar, mais que os outros caças em licitação no Brasil, exatamente estes sensores e radares, ou seja, trata-se aparentemente de uma ‘aeronave-fantasma’, que precipita sua sombra e torna-se obscura nos radares, tal como o caça F117, usado pelos EUA na Guerra do Golfo por Bush-pai, Paul Virilio exemplificou essa tecnologia em "A Arte do Motor". Portanto, tecnologicamente o que se discute no Brasil é como driblar os radares, mas para Barack Obama o que está em questão é pura economia, poupar o 'luxo bélico', o que é óbvio após a crise dos papéis podres.

Desde 1976 o Brasil procura desenvolver essa tecnologia de radares, sensores e interceptores, como infra-estrutura básica no setor aeroespacial, com destaque para o pólo militar-industrial em São José dos Campos - SP. Por exemplo, o SISDACTA [Sistema Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo] foi estabelecido no país, com a primeira implantação em um polígono de 1.500.000 km2, entre Brasília-Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte-Brasília, conforme João Baptista Peixoto em "Os Transportes no Atual Desenvolvimento do Brasil". Tratava-se de um sistema de detecção-radar através de unidades de detecção e de telecomunicações, estrategicamente localizadas para controlar aeronaves com ‘transponder’. De 1979 a 1973, entretanto, já se instalava um sistema nacional de telecomunicações por rede hertziana; de 1974 a 1984 incorporou-se ao sistema o satélite INTELSAT e, por fim, entre 1985 a 1988 desenvolveram-se dois satélites brasileiros, o Brasilsat I e II, histórico resumido, mas desenvolvido por Milton Santos e María Laura da Silveira em seu livro "O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século XXI". O SIVAM [Sistema de Vigilância da Amazônia] realizou-se por meio de um convênio entre o Estado brasileiro e a empresa norte-americana Raytheon, em 2002, patrocinada e recomendada pelo governo dos Estados Unidos. Este acordo suscitou opiniões divergentes: cientistas nacionais identificaram o SIVAM como obra faraônica – uma "Transamazônica Eletrônica", além de criar relações de dependência desnecessária com os Estados Unidos.

Acontece que no âmbito do espaço hertziano, condutor dos sinais provenientes do espaço aéreo, explora-se a detecção multistática por meio de emissões não-cooperativas, mas o que isso quer dizer? Trata-se de um conceito soviético que põe o Radar obsoleto, uma vez que a televisão pode substituir os radares de vigilância ou de controle do tráfego aéreo e detectar em qualquer ponto do espaço atmosférico aviões em voo. A limitação só diz respeito ao alcance das estações transmissoras e retransmissoras de TV, segundo S. Brosselin, "Guerre des Ondes: le Radar Squatte la Telévision", em Le Monde de L'aviation, nº 12, maio de 1999. Observe! Como a Central Globo de Televisão, por exemplo, cobre todo o território brasileiro, o país inteiro está mergulhado no espaço hertziano da televisão. Nesse 'lençol eletromagnético' os sinais audiovisuais se comportam como os que são emitidos por radares contínuos. Quando um avião em voo é atingido por um sinal eletromagnético, ele retrodifunde uma parte deste mesmo sinal. Então, basta dispor de um receptor de televisão comum, mais duas antenas espinha-de-peixe simples e um sistema de tratamento e amplificação do sinal recebido, para detectar o aparelho. Esse 'ecossistema hertziano', de acordo com Paul Virilio em seu livro "Estratégias da Decepção", foi designado por "Silent Sentry", que a Lockheed-Martin revelou ao público no outono europeu de 1998. Quer mais? A vantagem desse sistema reside no caráter indestrutível desses detectores que cobrem o território inimigo, ou seja a 'arquitetura de detecção estratégica' se revela: com uma base de dados que engloba as milhares de antenas [de difusão das cadeias de TV e rádio] que varrem o globo e interconectando-as, o RADAR TV permitiria cobrir o conjunto dos espaços aéreos dos dois hemisférios. Portanto, Sr. Clóvis Rossi ainda tem dúvida que essa tecnologia já nos foi transferida, se não, já foi estabelecida e promovida em nosso território, tanto pelos militares da FAB quanto pela iniciativa privada.

A Guerra Fria acabou!? Mas fala-se em dissuasão no Brasil, como? Nunca se viu dissuasão sem 'bomba nuclear'. Energia nuclear é totalmente discriminada entre os ambientalistas, concorda-se, porém... É um escândalo o Brasil não ser considerado uma potência porque não possui ‘bomba nuclear’, ou melhor, enriquecimento de urânio, tecnologia nuclear, e ficar atrás da Índia, da África do Sul e da China. O que esse submarino com propulsão nuclear poderá justamente propiciar ao Brasil. Mas, isso não se discute entre os ecologicamente corretos, o que também não se discute é uma ‘economia antimíssil’ de Obama, barateada com sensores. Cá entre nós, o Brasil já emprestou dinheiro para o FMI demais nesses últimos anos e comprar essa aeronave da Boeing em fim de linha, ainda mais com possíveis embargos do congresso norte-americano seria uma loucura. Tudo isso ainda é suportável, porque em geral loucura não é crime, o que está sendo insuportável é a direita oposicionista na imprensa brasileira desejar de todas as formas que os EUA sejam beneficiados com essa licitação das Forças Armadas do Brasil. Portanto, enquanto Barack Obama se organiza com sensores, o Brasil busca uma forma de fugir deles!

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Caças Fantasmas: Stealth Fighter [Rafale I]


O que está em questão na compra de caças Rafale [Dassault] que favorecem os franceses na busca por defesa e transferência tecnológica pelo Brasil? Historicamente, a política de ‘antecipação da industrialização’ referiu-se à decisão de ultrapassar a etapa da ‘substituição de importações’, o que encorajou a manufatura de novos produtos e o interesse por ‘transferência de tecnologia’. Essa ambição dominou as Forças Armadas Brasileiras desde meado do século passado, como destacaram Bertha K. Becker e Claudio Egler em seu livro “Brasil: uma Nova Potência Regional na Economia-Mundo”, especialmente em quatro setores estratégicos: aeroespacial, indústria bélica, nuclear e da computação.

As associações entre Estado e multinacionais se apresentaram de modo complexo no Brasil, o que se verificou com o desenvolvimento dos setores da computação e da indústria bélica. Com a criação da IMBEL [Indústria de Material Bélico], em 1975, e a concentração no seu interior de três grandes empresas [Avibrás, Embraer e Engesa] reforçou-se o processo de industrialização brasileira de bens de capitais. A participação do Estado brasileiro na produção industrial resultou na criação de uma holding como a IMBEL, colocando o país na lógica do capitalismo mundial, sob uma diversificação da produção e na internacionalização dos mercados.

A participação da IMBEL no setor da informática criou alguns problemas, por exemplo, com a criação da SEI [Secretaria Especial de Informática] responsável pela regulamentação de reserva de mercado para esse setor, o que gerou uma série de polêmicas internacionais, obtendo a IBM do Brasil como pivô, de acordo com Francisco Capuano Scarlato em ser artigo “O Espaço Industrial Brasileiro”. As regulamentações da SEI dificultaram a entrada de componentes para a fabricação de computadores pela IBM, assim os EUA foram motivados a retaliar e reagir à entrada de produtos brasileiros no mercado norte-americano. Com a liberalização da economia brasileira na década de 1990, entretanto as ações da SEI foram esvaziadas.

Acrescente-se a isso outro dado, em 1976 estava prevista a exportação de 76 aeronaves Bandeirantes para os Estados Unidos, mas houve uma reação da empresa Cessna que, junto ao governo norte-americano, tentou criar dificuldades para a compra desses equipamentos brasileiros, segundo João Baptista Peixoto em seu livro “Os Transportes no Atual Desenvolvimento do Brasil”. Neste mesmo ano, contudo a Embraer assinou um acordo com a Companhia Geral de Aeronáutica [empresa francesa] que possibilitaria a venda de aviões brasileiros para os mercados do Oriente Médio e da Europa. Percebe-se que as relações fortuitas entre Brasil e França não aconteceram recentemente, como por exemplo, entre a Embraer e a empresa aérea francesa [Air France], que são absolutamente diferentes das relações político-diplomáticas com governos norte-americanos, como o veto de W. Bush às vendas de super tucanos para Venezuela e Irã. Portanto, o posicionamento político do atual governo brasileiro em proveito da compra de caças fabricados na França em nada nos assustaria, como antecipou o presidente Lula no dia 07 de setembro de 2009. Saem perdendo a empresa Boeing e a sueca Saab em disputa com a Dassault uma operação que chega a 10 bilhões de dólares que envolve a aquisição de 36 aviões de combate Rafale.

Em uma análise fria e sob um cálculo de forças preciso, nem o F-18 Super Hornet [Boeing-EUA] muito menos o Gripen NG [Saab-Suécia] e tampouco o Rafale [Dassault-França] corresponderiam a um grande investimento de alta tecnologia? Por quê? Porque nenhum destes caças de combate possuem a propriedade de serem objetos voadores não detectáveis por radar, aeronaves de combate analisadas por Paul Virilio em seu livro “Estratégias da Decepção”, a partir das experiências norte-americanas no deserto do Golfo Pérsico, nas emboscadas da década de 1990 guiadas por Bush-pai. A tecnologia aeroespacial pressupõe atualmente esse tipo de dispositivo, portanto, as aquisições brasileiras não se referem a aviões furtivos [Stealth], como a invenção do F117, com força de penetração que desafia os raios de ondas radioelétricas dos radares, ao ponto de cegar as telas de controle – ‘aviões fantasmas’ que antecipam o desaparecimento de sua própria imagem. Deste modo, uma unidade do F117 poderia derrotar dezenas de qualquer um desses caças oferecidos em licitação para a Força Aérea Brasileira, mas depois dessa crise econômica mundial, esse caça furtivo deve estar enferrujando num dos galpões da força aérea norte-americana. Sem recursos financeiros para levantar alguns voos e sem frustrar sua tecnologia fantasma, realmente ele desapareceu das telas dos radares?

Neste caso, exigir a transferência de tecnologia é o mínimo que esses 10 bilhões são capazes de comprar, afinal são caças, em geral, em fim de linha. Em outras palavras, o Super Hornet está no limite de sua evolução, não tem mais potencial de desenvolvimento; o Gripen NG é um protótipo ainda, com apenas um motor, é o mais lento dentre eles e o mais barato, vende-se dois por um; o Rafale é o mais caro, com altos custos para manutenção e treinamento, por isso especula-se que se o Brasil não efetivar essa compra a empresa francesa não o produzirá mais. Mas foi a Dassault que desenvolveu a melhor tecnologia de invisibilidade, entre todos os outros caças em disputa pela FAB, isto é, os radares inimigos demoram mais tempo para perceber o Rafale, assim, com pilotos bem treinados, pode-se driblar as ondas radioelétricas tal como o F117. Sem dúvida, enfim, a opção francesa é de longe a melhor, principalmente por ser a mais segura em termos de transferência tecnológica e historicamente a mais produtiva como parceira econômica. Em termos diplomático-militares, de defesa do território, esses caças Rafale colocariam o Brasil numa posição mais confortável. Mas, certamente, aliando-se a uma frota de submarinos de ataque com propulsão nuclear, as Forças Armadas do Brasil será soberana no Atlântico Sul e na América Latina inteira, chegando até forçar nossos vizinhos a rever suas posições geoestratégicas.

sábado, 12 de setembro de 2009

Law and Order: Trump Tower, Suburb


As maneiras de vigiar e policiar se multiplicam, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a prisão tornou-se uma estratégia-chave para resolver problemas que surgem entre trabalhadores descartados e populações marginalizadas. Mas essencialmente o aspecto coercitivo do estado neoliberal fortalece-se para proteger interesses corporativos, reprimir a dissensão. O Estado neoliberal deve favorecer direitos individuais à propriedade privada, ao regime de direito e as instituições de mercados de livre funcionamento e do livre comércio, trata-se de uma trama institucional essencial à garantia das liberdades individuais. O Estado tem, por isso, de usar seu monopólio dos meios de violência para preservar a todo custo essas liberdades. O aumento da vigilância e do policiamento, no caso norte-americano, do encarceramento de elementos recalcitrantes da população indica uma tendência mais intensa do controle social, conforme David Harvey em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”. O complexo prisional-industrial ainda é um setor florescente na economia estadunidense. O papel do Estado neoliberal assume rapidamente o da repressão ativa, que chega a uma guerra limitada a movimentos de oposição, como os do terrorismo ou do tráfico de drogas.

A teoria neoliberal articula a lei ao crime, assim codifica a penalização. Parte-se do princípio que um sistema penal para funcionar bem é necessário uma boa lei. A lei não deixa de ser a solução mais econômica para punir devidamente as pessoas e para que essa punição seja eficaz. Trata-se, de um lado, do crime como uma infração a uma lei, e, de outro, não há crime nem é possível incriminar um ato enquanto não houver uma lei. A lei só se tornou um mecanismo efetivamente adotado no poder penal europeu no fim do século XVIII. O homo penalis é o homem que é penalizável, que se expõe a lei e pode ser punido por ela, de acordo com Michel Foucault em seu livro “Nascimento da Biopolítica”. Assim, ‘Law and Order’ tem, pois, originalmente um sentido preciso que pode ser verificado além do liberalismo: o Estado não intervirá na ordem econômica anão ser na forma da lei, e somente no interior dessa lei que vai aparecer algo como uma ordem econômica, como efeito e princípio da sua própria regulação.

Atualmente, os muros, as cercas eletrificadas e os aparelhos de vigilância, o medo, a segregação, contribuem para a fundação de uma espécie de cidade carcerária, que complementa um processo de favelização praticamente em todas as cidades brasileiras. No Brasil urbano houve um processo de segregação dos pobres para espaços desprezados pela elite, deste modo, eles ocuparam as encostas de morros, as beiras de rios e canais, ou amontoaram-se em favelas nos interstícios dos bairros de classe média ou espalharam-se por loteamentos irregulares na periferia. Nos Estados Unidos, os guetos não evitam que seus moradores levem uma vida, em geral, excluídos das atividades econômicas da cidade à sua volta. O gueto se renova numa acepção de unidade sócio-espacial voltada sobre si mesma, onde os residentes encontram suas ocupações, subempregos legais ou ilegais, com destaque para o tráfico de drogas. Os suburbs da classe média norte-americana não deixam de ser enclaves excludentes, com uma vida econômica e social também apartada da vida urbana. Os antigos suburbs eram inteiramente residenciais, mas agora são amplamente auto-suficientes em matéria de comércio e serviços. Beverly Hills, na Califórnia, ilustra esse tipo de enclave excludente, assim como as torres de luxo nova-iorquinas, Trump Tower, é um dos exemplos de fortified citadels, que não se localizam nos arredores das cidades, mas nas áreas centrais.

Se o neoliberalismo implica as liberdades individuais, por mais paradoxo que pareça, a população chega a viver cotidianamente, às vezes inconscientemente, o ápice da própria privação da liberdade, seja nas prisões e nos guetos, seja nos condomínios fechados ou fortified citadels. Trata-se de uma cidade carcerária imposta pelo neoliberalismo, essencialmente biopolítico, ou seja, trata-se do paradoxo de uma cidade como prisão, que acondiciona a auto-segregação escapista dos ricos e que impõe a segregação induzida dos pobres.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Militarização, 'Drug-Cities' & Lawman


As prisões não servem efetivamente para reinserir na sociedade, punir ou neutralizar desviantes, mas têm servido para o controle social dos pobres. Como nos Estados Unidos o confinamento desproporcional dos pobres e das minorias étnicas tem servido menos para tirar de circulação ‘predadores violentos’ que para tirar de circulação parte da massa desempregada? Em estudos de Loïc Wacquant, como “As Prisões da Miséria”, percebe-se que a grande maioria dos quase dois milhões encarcerados, em 1994 nos EUA, não estava presa por terem cometido homicídio, roubo ou estupro, mas por razões de desordem na vida pública, em especial, pela infração da legislação de drogas. O crime não deve valer a pena para o criminoso, mas o que ocorre na ‘cultura da impunidade’ em um ambiente da ineficiência policial, acontece o inverso: o crime compensa. No Far West do sistema mundial capitalista, quem não reivindicou por um Wyatt Earp, um lawman, homem da lei que explorava a jogatina e abusava da violência da para impor ordem na casa, mesmo conciliando seu lema de ‘lay down the law immediately!’ com seus lucrativos interesses privados, como manager ou segurança de saloon. Meio bandido, valentão e violento, reza a lenda que Wyatt Earp ‘salvou’ Dodge City, trouxe-lhe a ordem e imortalizou-se nas telas de cinema. Afora essa alegoria cinematográfica, nas nossas Dodge Cities contemporâneas, não vai ser a ajuda providencial de um deus ex machina à la Wyatt Earp, mas sim que se gerem novas articulações sociopolíticas. Afinal, no Rio, em São Paulo e em tantas outras cidades no mundo, as forças que deveriam cuidar da segurança pública, muitas vezes, contribuem para realimentar insegurança aos cidadãos amedrontados.

Reconhece-se que o problema central da racionalidade governamental moderna girava em torno da conservação de uma dinâmica das forças e, para isso, no Ocidente, criou-se um duplo conjunto que se esboça, de um lado, como dispositivo diplomático-militar, e, de outro, um dispositivo de polícia, o que mais tarde irá se chamar ‘dispositivo de segurança’, conforme Michel Foucault em seu livro “Segurança, Território, População”. Desde o século XIX, um estabelecimento de um dispositivo militar permanente passou a supor a profissionalização dos homens de guerra; a constituição de uma carreira das armas; uma estrutura armada permanente, para enquadrar as tropas recrutadas excepcionalmente em tempo de guerra; um equipamento de fortaleza e de transportes; um saber, uma reflexão tática, tipos de manobras, esquemas de ataques e de defesa, em suma, toda uma reflexão própria sobre a objetividade militar e as guerras possíveis. Não se trata de um dispositivo militar que vai ser a presença da paz na guerra, mas a inclusão da diplomacia na economia política. Assim como a polícia vai se ocupar com o número de homens, em primeiro lugar, tanto no que concerne à atividade dos homens quanto à sua integração numa utilidade estatal, saber quantos são e fazer que haja o número adequado possível, afinal a força de um Estado nunca deixou de estar ligada ao número de seus habitantes, em tese, a polícia deveria zelar para que as pessoas possam manter efetivamente a vida que o nascimento lhes deu.

No final do século XX, o ex-presidente do Brasil foi forçado pelas circunstâncias a se pronunciar sobre problemas como criminalidade violenta e crime organizado, de acordo com Marcelo Lopes de Souza em seu livro “Fobópole”. O então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em discurso proferido em 1996 a bordo de um navio-escola da Marinha de Guerra, expressou a opinião de que o tráfico internacional de drogas e armas constituía uma ameaça à soberania nacional: ‘eles [os traficantes] não só desafiam a nossa soberania nas fronteiras, no espaço aéreo e nos rios da Bacia Amazônia, como também influenciam no risco de esgarçamento do tecido social brasileiro’ [Jornal do Brasil, 6/3/1996]. Em torno de um mês depois, falando para uma plateia de 25 novos generais, na presença dos seus ministros militares, Fernando Henrique considerou o tráfico de drogas o novo inimigo da segurança nacional, a ser combatido pelas Forças Armadas [O Globo, 17/4/1996]. Simultaneamente, considerando as articulações internacionais envolvidas no tráfico de drogas e armas, redes do crime organizado, esquemas de lavagem de dinheiro, pressões diplomáticas e ‘cooperação militar’ foram desdobradas na esteira da ‘war on drugs’ proclamada pelo governo norte-americano, assim violência urbana e insegurança pública deixavam de ser apenas uma expressão política e alcançavam uma magnitude geopolítica. Se a opinião pública brasileira clamava por ações das instituições militares no combate à criminalidade, as Forças Armadas resistiram, pois percebiam que o seu papel não era substituir policiais a trocar tiros em favelas.

Anda-se, enquanto isso, pelas favelas e pela violência que incendeia os morros do Rio. A polícia corre atrás de telefonemas, quase sempre anônimos, anunciando a descoberta dos corpos da guerra de quadrilhas. Ao mesmo tempo, sob enorme pressão da imprensa e da opinião pública, prepara ‘operações de limpeza’ nos labirintos do tráfico de drogas. Algumas vezes, centenas de policiais ocupam um morro, durante quatro ou cinco horas, e voltam sem resultados. Outras vezes são ataques-relâmpagos de pequenos grupos de policiais. Desfilam uniformizados, camuflados, fuzis militares, granadas, helicópteros e cães farejadores.

Discute-se, entretanto, mais no investimento do tratamento terapêutico de usuários de drogas e menos no combate armado a traficantes é o que determina a atual política de segurança da Inglaterra. O viciado que se submete a tratamento tem a pena reduzida e o traficante que não usa a violência não será importunado, segundo Mike Trace, ex-Czar das Drogas do Reino Unido, que esteve presente na primeira reunião da Comissão Brasileira sobre Drogas e democracia (CBDD), em 21 de agosto de 2009, uma iniciativa do Movimento Viva Rio: discutem-se aspectos relevantes e referentes às drogas nos campos da Farmacologia, História recente e políticas humanas, mais eficazes.

Miséria, Loucura: o Atenuante Psiquiátrico


Pautado na ancestralidade do Código Penal francês, de 1810, a partir do célebre artigo 64, segundo o qual não haveria crime nem delito se o indivíduo estivesse em estado de demência no momento no crime, um exame médico-legal deveria permitir estabelecer uma demarcação dicotômica entre doença e responsabilidade, terapêutica e punição, medicina e penalidade, hospital e prisão. Trata-se de um enunciado que se repetia: ‘a loucura apaga o crime’, de acordo com Michel Foucault em seu curso “Os Anormais”. Em outros termos, quando o patológico entrava em cena, a criminalidade, baseada na lei, deveria desaparecer. A seguir, pelo menos na França, uma nova regulamentação administrativa cristalizou-se essencialmente na célebre lei de 1838, do ponto de vista extramanicomial, referia-se a internação ex officio: um alienado internava-se num hospital psiquiátrico por ordem da administração municipal, mas essa internação tinha que ser motivada por um estado de alienação capaz de comprometer a ordem e a segurança públicas. Deste modo, quando o psiquiatra recebia um doente internado ex officio, ele precisava responder, de um lado, em termos médicos, patológicos, de outro, em termos de perigo, desordem.

Destaca-se certa ‘ordem psiquiátrica’, que procedia do exterior e mostrava de que modo o hospital como instituição só poderia ser compreendido a partir de algo exterior e geral, na medida em que essa ordem se articulava a um projeto absolutamente global, que visava toda a sociedade, em geral, denominado por ‘higiene pública’. Essa ordem psiquiátrica coordenava por si mesma todo um conjunto de técnicas variadas relativas à educação das crianças, à assistência dos pobres, à instituição do patronato operário, passando por trás das instituições tentava-se encontrar globalmente o que foi chamado de ‘tecnologia de poder’, por Michel Foucault em seu livro “Segurança, Território e População”. Assim, ao examinar as relações de poder entre razão e loucura no Ocidente moderno, procurava-se interrogar os procedimentos gerais de internamento e segregação, passando por trás do asilo, do hospital, das terapias e sintomatologias, para se encontrar uma economia geral de poder.

As técnicas de higiene coletiva (que tendem a prolongar a vida humana) ou os hábitos de negligência (que têm como resultado abreviá-la) dependiam do valor atribuído à vida em determinada sociedade, ou seja, a ocidental, a partir do século XIX, porque se tratava de um julgamento de valor que se exprimia nesse número abstrato que sempre foi a duração média da vida humana. Por isso, um traço humano não pode ser normal por ser frequente, mas pode ser frequente por ser normal, isto é, normativo em um determinado gênero de vida, no sentido que lhe foi atribuído pela escola de Vidal de La Blache, conforme Georges Canguilhem em seu livro “O Normal e o Patológico”. Se o homem normal poderia ser caracterizado pelos fisiologistas é porque existem homens normativos – homens para quem ser normal é romper normas e criar novas normas, normas coletivas de vida. Se o europeu pôde servir de norma, isto ocorreu apenas na medida em que seu gênero de vida foi considerado como normativo. Assim, o homem é um animal que consegue variar, por meio da cultura e da técnica, o ambiente de sua atividade. Portanto, a doença não deixa de ser uma norma de vida, mas uma norma inferior, porque não tolera nenhum desvio das condições que a valida, por ser incapaz de se transformar em outra norma. O ‘ser vivo doente’ suporta condições bem definidas e perdeu a capacidade normativa, ou seja, de instituir novas normas diferentes em condições diferentes.

Ainda no século XIX, uma enorme prática da droga ocorria no interior dos hospitais psiquiátricos franceses, por exemplo, o ópio, o clorofórmio e o éter. Moreau de Tours, em 1845, publicou “Du Haschisch et de L’aliénation Mentale”, ele mesmo experimentou o haxixe e pode perceber em sua intoxicação certas fases: passado o momento do sentimento de felicidade, da dissociação de ideias, do erro sobre o tempo e espaço, está-se na ordem da doença mental. Em todo caso, essa utilização da droga e essa assimilação dos seus efeitos com a doença mental deram aos médicos a possibilidade da reprodução da loucura, artificial [por causa da dose de intoxicação por haxixe] e naturalmente [porque nenhum dos sintomas enumerados Moreau de Tour são alheios à loucura]. Enfim, sob o efeito da intoxicação de haxixe, o médico terá a possibilidade de se comunicar diretamente com a loucura por meio da experiência subjetiva e não pela observação exterior dos sintomas visíveis. Até Moreau de Tours, portanto, o psiquiatra ditava a lei à loucura, como indivíduo normal por meio da exclusão: ‘você é louco uma vez que não pensa como eu’. A partir da experiência com o haxixe, o psiquiatra vai poder dizer: ‘sei qual é a lei da loucura, eu a reconheço porque posso reconstruí-la em mim mesmo’.

Foi entre os muros do internamento, onde Pinel e a psiquiatria do século XIX encontraram os loucos; lá os deixaram, por antes vangloriar-se por terem-nos libertado. A partir da metade do século XVII, a loucura esteve ligada a essa terra de internamentos, gesto que designava sua terra quase natural. Até que as reformas antipsiquiátricas, antimanicomiais, revelarem sua força no final do século XX. A prática do internamento foi uma reação à miséria, ao miserável e ao pobre, o homem que não poderia responder por sua própria existência.

Sem-Teto, Poliscar, Wodiczko [NY]


O pobre urbano ocupa as partes menos desejáveis das cidades, incluindo em suas fileiras a família favelada ou quase favelada. A favela urbana é um lugar humilde onde o imigrante recém-chegado geralmente finca o pé e com parcos recursos inicia vida nova. Ela é também o lugar pungente, difícil, lento, de gradativo ajustamento, que caracteriza a aceitação por uma sociedade branca, como a norte-americana, de elementos de diferentes costumes. Seus habitantes se constituem de famílias antigas na favela étnica e recentes migrantes de outras culturas que, por causa de atributos físicos facilmente reconhecidos, acham mais fácil do que seus predecessores acharam construir a sua vida sobre o desajustamento. Afinal, as muralhas do gueto tornam-se mais altas do que nunca.

O fenômeno da favela nos Estados Unidos ainda não tinha sido mapeado ainda na década de 1960, por causa do grande número de cidades com áreas de favelas, a situação precisa dos limites, o extraordinário problema dos dados estatísticos, tudo isso desafiava o geógrafo norte-americano a mapear esse fenômeno sócio-espacial, segundo Gordon E. Reckord em seu artigo “A Geografia do Pauperismo nos Estados Unidos”. Mas para a aplicação de programas federais norte-americanos, inclusive o de combate ao pauperismo, da antiga Lei de Desenvolvimento Econômico, exigia-se identificar especificamente as áreas, regiões atingidas. O pobre urbano, o grau de pobreza nos Estados Unidos circula em torno de uma renda familiar de 3.000 dólares, assim, mais de 54% das famílias que ganhavam menos de 3.000 dólares moravam em zonas urbanas até a década de 1970. Sempre houve uma correlação íntima entre a incidência de pauperismo individual e os aspectos da paisagem citadina, entretanto houve um padrão distinto para a incidência de pauperismo não-urbano nos Estados Unidos a partir década de 1960: [1] várias regiões extensas de baixa renda e grande desemprego separadas umas das outras e afastadas das terras baixas litorâneas [Apalaches, Grandes Lagos, Ozarka, Área Indígena dos Quatro Cantos, Nova Inglaterra setentrional, parte das Montanhas Rochosas]; [2] áreas isoladas menores, dispersas [partes das Grandes Planícies, áreas esparsas do Oeste e do Pacífico Noroeste, áreas vastas de planícies litorâneas e baixadas junto a encostas no Sudeste].

No Greenwich Village de Nova York, a Rivington Street do final do século XX, com suas construções abandonadas, que se tornavam esconderijos de viciados, praticando suas roletas-russas. Ocasionalmente, jovens assistentes sociais passavam pelo local, batendo nas portas ou nos batentes das janelas, oferecendo de graça seringas descartáveis. Se o problema das drogas não sensibilizou os moradores do Village, menos estranheza causou os sem-tetos. Estimou-se que, no centro de Nova York, para cada duzentas pessoas existia uma sem moradia,índice superior ao de Calcutá e abaixo do Cairo, segundo Richard Sennett em seu livro “Carne e Pedra”, embora reconheça que estatísticas sobre desabrigados sejam mutantes, Manhattan somou cerca de trinta mil nos verões, caindo para dez ou doze mil durante o inverno.

Deste modo, o ‘veículo do sem-teto’ tornou uma intervenção distorcida na paisagem urbana, quando Krysztof Wodiczko, artista de Nova York, o exibiu pela primeira vez em 1988, foi testado nas ruas do Lower East Side de Nova York e na Filadélfia, até que criou o ‘Poliscar’ em 1991, com maior precisão na segurança e privacidade, equipado com rádio, câmera externa, monitor de televisão, descrito por Neil Smith em seu artigo “Contornos de uma Política Espacializada”. Trata-se mais do que uma simples obra de arte crítica e de ironia simbólica, o veículo é funcional. O veículo do sem-teto baseia-se numa arquitetura vernacular do carrinho de supermercado e proporciona a o espaço e os meios para facilitar algumas necessidades básicas: transportar, sentar, dormir, abrigar-se e lavar-se. O veículo do sem-teto não é um lar, mas um bem imobiliário ilegal, uma arquitetura provocada pela pobreza, um míssil, a indicação de fuga, recuo, ataque. Sem um lar ou outro lugar para guardar suas posses, afinal para quem foi expulso do espaço privado pelo mercado imobiliário, fica difícil carregar suas posses, então muitos sem-tetos usavam carrinhos de supermercado ou carros de lona do correio para carregar suas coisas, latas e garrafas que poderiam ser trocadas por um níquel. No final da década de 1980, na cidade de Nova York, estimava-se que 70.000 ou 100.000 pessoas eram sem-teto.

Cavalo de Tróia Neoliberal [ONG, OTS]


O saldo geral das consequências ambientais da neoliberalização é quase sempre negativo. Esforços sérios de criar índices de bem-estar humano que incluam o custo das degradações ambientais sugerem uma tendência negativa em aceleração a partir de mais ou menos 1970. A contribuição humana para o aquecimento global disparou e acelerou a destruição das florestas tropicais desde então, o que resultou em graves implicações para a mudança climática e a perda da biodiversidade. Destaca-se que os dois principais culpados pelo aumento das emissões de dióxido de carbono nos últimos anos têm sido as locomotivas da economia global, os Estados Unidos e a China [que aumentaram suas emissões em 45% na última década]. De um lado, a crescente dependência norte-americana de petróleo importado tem óbvias ramificações geopolíticas, de outro lado, a China passou da auto-suficiência na produção de petróleo no final dos anos 1980 para a posição de segundo importador global, atrás dos Estados Unidos. Neste caso, se entramos na zona de perigo, ao ponto de transformar o ambiente global, em particular o clima, impróprio para a vida humana, então uma maior adoção da ética neoliberal seria nada mais nada menos que uma opção mortal.

A insistência neoliberal na privatização dificulta estabelecer acordos globais sobre princípios de gerenciamento de florestas para proteger hábitats valiosos e a biodiversidade, particularmente nas florestas tropicais. Em países mais pobres com substanciais recursos florestais, a pressão para aumentar as exportações e permitir a posse e as concessões a estrangeiros significa que até as proteções mínimas das florestas são retiradas. Com os ajustes estruturais do FMI, por exemplo, cria-se um impacto ainda pior, a austeridade imposta implica aos países pobres ficar com menos dinheiro para administrar suas florestas. Assim, esses países são pressionados a privatizar as florestas e a abrir sua exploração a madeireiras estrangeiras com base em contratos de curto prazo, ultra-exploração de recursos florestais tal como se verificou no Chile pós-privatização. Em geral, quando a austeridade imposta pelo FMI e o desemprego se abater sobre os países, populações excluídas podem ocasionalmente buscar o sustento na terra e promovem certa dilapidação indiscriminada das florestas. O método favorecido são as queimadas, assim as populações sem posses podem juntas com as madeireiras destruir imensos recursos florestais num curto espaço de tempo, o que ocorreu em grande medida no Brasil.

Sabe-se que a trajetória do neoliberalismo está fundamentada no indivíduo e no ativismo dos direitos individuais. Como as pessoas mais necessitadas não possuem recursos financeiros para defender seus próprios direitos, a única maneira de esse ideal poder se articular é com a formação de ‘grupos de advocacia’. A ascensão desses grupos e de ONGs, o chamado Terceiro Setor, acompanhou os discursos sobre direitos, a partir da década de 1980, quando começou a multiplicar esse tipo de discurso. As ONGs em muitos casos vieram preencher o vácuo de benefícios sociais deixado pela saída do Estado dessas atividades, ou seja, trata-se de uma ‘privatização via ONG’, deste modo, conforme David Harvey em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”, as ONGs funcionam como ‘cavalos de Tróia do neoliberalismo global’.

A fronteira entre o Estado e o poder corporativo tornou-se cada vez mais porosa. O que resta da democracia representativa é sufocado ou, como nos Estados Unidos, que é legalmente corrompido pelo poder monetário. Como o acesso à justiça é nominalmente igualitário, mas na prática extremamente caro, o resultado é bastante favorável a quem possui o poder do dinheiro. Defendem-se vários direitos como a proteção ao consumidor, os direitos civis ou os direitos dos deficientes, que obtiveram ganhos substanciais mediante esses recursos financeiros, proveniente de um ‘vício de classe’ em decisões judiciais. Deste modo, as organizações não-governamentais e do terceiro setor [ONGs, OTSs] proliferaram-se de maneira notável sob o neoliberalismo, através da crença de que a oposição mobilizada fora dos aparelhos estatais e no interior de uma entidade distinta designada por ‘sociedade civil’, ou seja, a ilusão de uma casa de força política oposicional e de transformação social.

As organizações não-governamentais são, portanto as mais novas forças da ‘sociedade civil’, que operam em diversos níveis, local, nacional e supranacional. As ONGs reúnem um enorme e heterogêneo conjunto de organizações, no começo da década de 1990, constava a existência de mais de 18 mil ONGs no mundo, algumas delas tentavam preencher a função tradicional dos sindicatos, outras davam prosseguimento à vocação missionária de seitas religiosas, em geral, todas procuravam agir em nome de populações não representadas por Estados-Nação. As ONGs são caracterizadas como organizações humanitárias, em cujo mandato que consiste em representar diretamente os direitos humanos globais e universais. Assim, organizações de direitos humanos [como a Anistia Internacional e Americas Watch], grupos pacifistas [como Testemunhas da Paz e Shanti Sena], e as agencias de socorro que combatem a fome e as doenças [como Oxfam e Médicos sem Fronteiras] defendem a vida humana contra a tortura, a inanição, o massacre, a prisão e o assassinato político.

O termo ONG pode ser definido, segundo Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro “Império”, como qualquer organização que pretenda representar o povo e trabalhar em seu interesse. As ONGs são, então, algum tipo de sinônimo de ‘organizações do povo’ porque o interesse do povo é distinto do interesse do Estado? É claro por isso que as ONGs, por estarem fora do poder do Estado e geralmente em conflito com ele, são compatíveis com o projeto neoliberal de capital global e o auxiliam. Essas ONGs, enfim se estendem largamente no húmus do biopoder neoliberal, como se fossem os próprios capilares extremos da rede contemporânea de poder. Aqui, neste vasto e universal nível das atividades dessas ONGs, as ações imperiais dos EUA coincidem, num terreno ‘além da política’, ao satisfazer as necessidades da colonização da própria vida.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

TRIPS & Copyright ©


Pressupõe-se que todos os agentes que operam no mercado neoliberal tenham acesso às mesmas informações, assim como se presume que não haja assimetrias de poder ou de informações que interfiram na capacidade dos indivíduos de tomar decisões econômicas racionais em seu próprio benefício. Afinal, agentes melhor informados podem com demasiada facilidade tornar-se ainda mais fortes. Acrescente-se a isso o estabelecimento de propriedade intelectual [patentes], que estimula a ‘busca de renda’. Quem detém os direitos de patente geralmente usa seu poder de monopólio para estabelecer preços de monopólio e evitar transferências de tecnologia exceto se pagarem altos preços. Os capitalistas tiveram de descobrir outras maneiras de criar e preservar seus tão cobiçados poderes monopolistas, portanto as duas principais manobras foram: centralização do capital [busca o domínio por meio do poder financeiro, economias de escala e posição de mercado] e a ávida proteção das vantagens tecnológicas, que substituem as vantagens locais [por meio de direitos de patentes, leis de licenciamento e direitos de propriedade intelectual]. Não por acaso, mas os direitos de patente tem sido alvo de intensas negociações no âmbito da OMC, a partir do acordo chamado TRIPS [Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights Agreement – Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio].

Desde a introdução do TRIP em 1994, previa-se que a aplicação das leis de patentes teria exceções por razões de saúde pública, neste caso, seria permitido emitir licenças obrigatórias para fabricação nacional de remédios e realizar importações paralelas [comprar um produto com patente válida de outro país onde se vende mais barato]. Na Declaração de Doha emitida na reunião de OMC, realizada em 2001, foram ratificadas as exceções existentes. Os países sedes das transnacionais farmacêuticas, Estados Unidos e União Européia, buscam reduzir as aplicações das exceções, reduzindo o número de enfermidades aplicáveis [somente malária, tuberculose e AIDS] e declarando que a Sars, a pneumonia asiática, por ser uma pneumonia atípica, não poderia entrar nessas exceções. Assim, abre-se espaço para avaliação de ocasião, segundo Carlos Walter Porto-Gonçalves em seu livro “A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização”, na medida em que se manipula o termo ‘razões de saúde pública’ que consta no documento TRIPS para que só seja válido em situações de ‘extrema urgência’.

Até pouco tempo atrás os Estados Unidos declararam que somente os 48 países extremamente pobres do mundo, segundo as Nações Unidas, poderia fazer uso do direito às exceções por razões de saúde pública. Sobre a discussão sobre genéricos e patentes, resta o direito dos países do Terceiro Mundo de usar e produzir os remédios que suas populações necessitam, sem depender nem submeter-se às multinacionais tampouco aceitar o sistema de patentes vigente, que não param de saquear recursos e conhecimentos indígenas e camponeses. Os conflitos derivados de diferentes modos de apropriação da natureza têm sido cada vez mais frequentes. A propriedade intelectual do material genético por meio de empresas, dotadas de poder jurídico, que ficam à vontade para reivindicar direitos de propriedade sobre conhecimentos ancestrais de outros povos e culturas. A Organização Mundial sobre Propriedade Intelectual – OMPI – avaliou, em 1995, em nada mais nada menos que 45 bilhões de dólares, o valor dos produtos farmacêuticos derivados da medicina tradicional comercializados no mercado internacional.

Trata-se de uma divisão territorial de poder que põe em jogo as relações desiguais estabelecidas entre um pólo hegemônico [detentor de tecnologia] e um pólo biocultural na Ásia, África e América Latina, ou seja, a busca sistemática do complexo químico-farmacêutico-alimentar para controlar os recursos genéticos, energéticos e da água. O International Cooperative Biodiversity Group [ICBG] coordenado pelo Technical Assessment Group [TAG] é um programa norte-americano que articula decisões militares e projetos de investigação da natureza, além de promover cruzamentos entre universidades e agências de investigação, assim como a composição dos diretórios ou conselhos de administração de organismos aparentemente não governamentais e/ou agências governamentais.

Mas como afirmava Karl Marx em seu livro “Capital”: ‘entre dois direitos, quem decide é a força’. Toda a trama jurídica do neoliberalismo quer garantir os direitos inalienáveis dos indivíduos, ou seja, o direito à propriedade privada e à taxa de lucros, neste sentido, o direito de propriedade tornou-se co-extensivo à apropriação do material genético e se justifica com a patente, com os seus lucros monopolistas exorbitantes. Segue a lista das ‘virtude burguesas’ que David Harvey elencou em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”: responsabilidade e obrigações individuais; independência da interferência do Estado; igualdade de oportunidades no mercado e perante a lei; recompensa à atividade empreendedora; cuidado de si mesmo e dos outros; mercado aberto com ampla liberdade de escolhas em termos de contrato como de troca. O sistema de direitos norte-americano, pautado na lógica neoliberal de acumulação do capital, estende-se do direito da propriedade privada do próprio corpo à liberdade de pensamento, de expressão e de manifestação. Aos brados ecológicos, mas adversos, foi exatamente isso que Bush quis dizer quando afirmou que os Estados Unidos dedicaram a estender a esfera da liberdade a todo o globo.

domingo, 6 de setembro de 2009

Tecnologia da Informação [TI] e Sweatshops


A ascensão do capitalismo financeiro pressupôs as chamadas ‘cidades globais’, Manhattan, Tóquio, Londres, Paris, Frankfurt, Hong Kong, que se tornaram ‘ilhas de riqueza e privilégios’, ‘guetos dourados’, como abrigo das finanças e das funções de comando, com imponentes arranha-céus e milhões de metros quadrados de escritórios para essas operações. Entre essas torres, o comércio cria um vasto campo de riqueza fictícia, enquanto os mercados especulativos de imóveis urbanos tornaram-se os principais mecanismos de acumulação. Houve ao lado disso, é inegável, uma extraordinária expansão das tecnologias da informação [TIs]. Na década de 1970 o investimento nesse campo não passava de 20%, mas em 2000 as TIs absorviam 45% dos investimentos. Foi assim que na década de 1990 anunciava-se ascensão de uma ‘nova economia da informação’, conforme David Harvey em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”. As tecnologias da informação são muito úteis ao neoliberalismo mais por desempenham atividades especulativas e maximizar o número de contratos no mercado de curto prazo do que para melhorar a produção. As indústrias culturais emergente ganharam também com isso, por usarem as TIs como base da inovação e do marketing de novos produtos, filmes, vídeos, videogames, música, publicidade, exposição.

Essas tecnologias da informação [TIs] foram amplamente estudadas, em termos político-militares, Paul Virilio analisou a ‘bomba informática’ e as ‘estratégias da decepção’ que suscita, sem deixar de redimensionar o ciberespaço como um ponto na trajetória de toda uma máquina de visão que surge como elemento policial na sociedade moderna, no mesmo meio em que se desencadeou a datiloscopia, a fotografia, o cinema e as tecnologias aeroespaciais; em termos histórico-sociais Manuel Castells pesquisou uma espécie de ‘genealogia da informação, desde a invenção do transistor em 1947, com a redefinição dos semicondutores através de velocidades cada vez mais rápidas, isto é, os chips como são usualmente denominados, até que se inventou o microprocessador, um computador com um único chip, em 1971, considerado o pai de todas as tecnologias depois da Segunda Guerra Mundial, auxiliando o impulso da microeletrônica, da optoeletrônica e das telecomunicações; em termos geoeconômicos, em “A Natureza do Espaço”, Milton Santos conceituou o ‘meio técnico-científico-informacional’, estabelecido por uma rede de fluxos que verticalizam as ações com suporte em objetos fixos, verdadeiras próteses nos territórios, capazes de conectar e interceptar ações provenientes de territórios distantes ou até mesmo comandos que partem dos centros de decisão e que precisam chegar aos capilares mais finos do aparelho produtivo, muitas vezes, do outro lado do mundo.

Deste modo, as habilidades informacionais se desenvolveram ao mesmo tempo em que se erigiu um paradoxo na economia neoliberal: a ‘economia informal’ expandiu em todo o mundo, na América Latina estima-se que tenha passado de 29% na década de 1980 chegando a 44% da população economicamente ativa na década de 1990. Desde a década de 1960 quase todos os indicadores globais de saúde, expectativa de vida, moralidade infantil mostram perdas em bem-estar. Foi nesse âmbito, do capitalismo neoliberal, que emergiu a figura prototípica do ‘trabalhador descartável’ ou uma forma moderna do trabalhador semi-escravo, os operários chamados ‘sweatshops’, que se complementa com os riscos à saúde, a exposição a uma ampla gama de substâncias tóxicas, a ausência de fiscalização ou regulamentação das condições de trabalho, imersos na flexibilidade dos mercados. Afinal, o capital é trabalho morto, vampiro que se anima ao sugar trabalho vivo e sua vida se alegra quanto mais trabalho vivo aspirar.

Colapso dot.com [1999]


No âmbito da teoria neoliberal está a necessidade de se construir mercados coerentes para a terra, o trabalho e o dinheiro, mas não como mercadorias, afinal a sua descrição como mercadoria é inteiramente fictícia. O capitalismo não pode seguir sem semelhantes ficções, ou então como compreender os danos produzidos por meio das ‘inundações e secas’ do capital fictício no sistema global de crédito no México, no Chile, Argentina, Leste Asiático. Uma lógica do capital se faz premente, se existem num território excedentes de capital e de força de trabalho que não podem ser absorvidos internamente, torna-se imperativo enviá-los a outras regiões ou nações onde possam encontrar novos terrenos para a sua realização lucrativa, para evitar num só golpe que se desvalorizem. Se o território não possui divisas ou mercadorias para dar em troca, ele precisará encontrá-la, ou receber crédito, neste caso, um território estrangeiro recebe empréstimos com o qual pode comprar as mercadorias excedentes geradas internamente. Desse modo gerou-se certo ‘endividamento territorial’ que se tornou um problema na década de 1980, quando muitos países pobres viram-se impossibilitados de pagar suas dívidas, ameaçando entrar em moratória.

Primeiramente, como definir o ‘capital fictício’? São as instituições estatais e financeiras que detêm o poder de gerar e oferecer crédito, assim elas criam o que se denomina por ‘capital fictício’, ou seja, toda uma trama de ativos em títulos ou notas promissórias desprovidos de suporte real, mas que podem ser usados como dinheiro, de acordo com David Harvey em seu livro “O Novo Imperialismo”. Suponha-se que se crie ‘capital fictício’ num montante mais ou menos equivalente ao capital excedente empregado na produção de petróleo a fim de dirigi-lo a projetos orientados para o futuro, por exemplo, construção de estradas ou educação, desse modo a economia pode revigorar, na medida em que tende a aumentar a demanda por derivados de petróleo por professores e trabalhadores do setor de construção. Se o gasto em ambientes construídos ou melhorias sociais se revelarem produtivos, em outros termos, se facilitarem formas mais eficazes de acumulação do capital mais tarde, os ‘valores fictícios’ certamente serão resgatados. É preciso cuidado, entretanto, o sobreinvestimento em ambientes construídos ou em despesas sociais não está livre de desvalorizações.

A segurança dos Estados Unidos e seu domínio financeiro nos negócios no mundo estavam garantidos na década de 1990, com efeito, houve uma explosão dos valores dos ativos no interior do país. Combinado a ascensão de uma ‘nova economia’ erigida em torno de ganhos de produtividade em uma rede de empresas virtuais, não foi difícil manter a economia norte-americana com crescimento rápido o bastante para arrastar o resto do mundo na obtenção de taxas respeitáveis de acumulação de capital. Assim, o consumismo [moeda de ouro dos norte-americanos] expandia em níveis estonteantes. Entre 1997-98 não tardou o colapso dessa ‘nova economia’ numa amontoado de empresas ‘virtuais’ falidas nos Estados Unidos [uma infinidade de dot.com], com seus escândalos contábeis que revelaram que o ‘capital fictício’ poderia permanecer irresgatável, o que não só solapou Wall Street, mas pôs em xeque o relacionamento entre capital financeiro e produtivo. Acontece que se o mercado consumidor norte-americano entrar em colapso, as economias, que buscam nesse mercado a saída para a sua capacidade produtiva excedente, também entrarão. Não resta dúvida sobre a tenacidade em que os bancos centrais de países como a China, o Japão e Taiwan emprestaram para os Estados Unidos cobrirem os seus déficits, porque se agirem assim, eles fornecem fundos para o consumismo dos EUA.

Dessa forma percebe-se que o capitalismo parece não ter limites exteriores, apenas um limite interior que é o capital em si, limite que não consegue encontrar, por isso o reproduz deslocando-o incessantemente. Como se um processo de desterritorialização fosse do centro para a periferia, dos países desenvolvidos para os subdesenvolvidos, mas não se tratam de exportações provenientes dos setores tradicionais. Destacam-se indústrias e plantações modernas que produzem uma enorme mais-valia nos países subdesenvolvidos, assim o capitalismo esquizofreniza cada vez mais na periferia, de acordo com Gilles Deleuze e Félix Guattari em seu livro “O Anti-Édipo”. Afinal, para eles, a esquizofrenia será o limite exterior do próprio capitalismo, mas ele só funciona se a inibir, substituindo-a pelos seus próprios limites, portanto, a esquizofrenia não é a identidade do capitalismo, mas, pelo contrário, a sua diferença, seu desvio e sua morte. Os fluxos monetários podem parecer perfeitamente realidades esquizofrênicas, contudo só existem e funcionam como tal na medida em que conjurar e repelir essa realidade. O esquizofrênico situa-se no limite do capitalismo, sua tendência desenvolvida, sobreproduto, proletário e anjo exterminador. Há pouco espaço para ficções, já que aqui o real flui, onde a cópia deixa de ser cópia para se transformar no Real e no seu artifício. Assim o esquizofrênico possuidor do capital mais pobre e mais comovente, não deixa de ser um ‘produtor universal’, que não sabe distinguir o produzir e o seu produto, cuja regra impera: a de produzir sempre um novo produzir, de inserir um produzir no produto.

Fraudes à la Ponzi


Quando um sistema histórico está em crise, move-se em duas direções, segundo parece para Immanuel Wallerstein: para preservar a estrutura hierárquica do sistema-mundo que existe ou para tentar reduzir, se não eliminar, as desigualdades. Quando o sistema mundo entra em uma espécie de ‘crise estrutural’ é porque se encontra no meio de um período caótico, onde correm bifurcações e que num período de tempo o sistema atual deixará de existir e um novo surgirá. Teoricamente, um sistema promove projeções lineares das suas tendências mais específicas, mas elas atingem limites, após os quais o sistema passa a se encontrar longe do equilíbrio, assim começa a bifurcar-se. Exatamente nesse ponto que se diz que um sistema está em crise, passando por um período caótico, no qual para se estabilizar procura uma ordem nova e diferente, ou seja, estabelecer a transição de um sistema para outro. Questiona-se também a produção de crises como meio de se retardar essa transição ou passagem. No ponto em que gerar crises significa não mais transitar nem mais bifurcar, mas conservar a ordem vigente. De que modo então compreender as incessantes manipulações de crises que tanto caracterizaram a orquestração da economia neoliberal?

Para além das bolhas especulativas e muitas vezes fraudulentas que caracterizam boa parte da manipulação financeira neoliberal, há um processe que consiste em lançar ‘a rede da dívida’ como recurso de acumulação por espoliação. Diz-se que a criação, administração e manipulação de crises evoluíram para uma arte da redistribuição de riquezas dos países pobres para os países ricos. Os Estados Unidos assumiram os trilhos da acumulação global de capital e abriram o caminho à pilhagem das economias periféricas, quando o complexo Tesouro dos Estados Unidos-Wall Street-FMI se especializava nessa prática. As crises da dívida ocorriam em países isolados na década de 1960, tornaram-se mais frequentes nas de 1980 e 1990, quando raros eram os países que não foram atingidos. Essas crises chegaram a assumir um caráter endêmico em regiões como a América Latina. Mas percebe-se que são crises, mas crises orquestradas, administradas e controladas para racionalizar o sistema e para redistribuir ativos.

Trata-se, por exemplo, daquilo que os neoliberais costumam chamar de ‘deflação confiscatória’, quando as crises financeiras causam transferência de propriedade e de poder a quem mantém intactos seus ativos e tem condições de criar crédito, de acordo com David Harvey em seu livro “O Liberalismo: História e Implicações”. Mas acrescente um sem número de operações fraudulentas com ações; esquemas de Ponzi [tipo ‘pirâmides’, em que se pagam rendimentos altíssimos (lucro) a alguns investidores a partir do dinheiro pago por investidores subsequentes, sem envolver receita gerada por algum negócio real, Charles Ponzi, fraudador italiano, inventou um desses esquemas nos EUA]; destruição planejada de ativos por meio da inflação; a dilapidação de ativos por meio de fusões e aquisições agressivas; promoção de níveis de endividamento que reduziram populações inteiras à escravidão; assalto aos fundos de pensão; manipulação de créditos, títulos e ações. Paisagem fraudulenta, pois essa é a natureza do atual sistema financeiro capitalista. Há o perigo, entretanto de as crises saírem do controle ou de se generalizarem, até mesmo de que surjam revoltas contra o próprio sistema que as cria. A crise acaba por gerar uma dissimetria entre possíveis revoltas e as fraudes do capital.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

‘NeoCONS’: Militarismo, Maioria Moral


O Partido Republicano norte-americano, no final da década de 1970, precisava de uma sólida base eleitoral para colonizar de fato o poder, foi assim que buscaram uma aliança com a ‘direita cristã’. Embora os integrantes mais antigos dessa ‘direita cristã’ não tenham sido politicamente ativos no passado, o partido político fundado em 1978, a ‘Maioria Moral’ de Jerry Falwey, mudou o quadro sócio-político por completo nos Estados Unidos, apelando ao nacionalismo cultural da classe trabalhadora branca e ao seu ‘ressentido senso de virtude moral’. Reconhece-se uma ‘base política’ mobilizada pela religião, mas também pelo nacionalismo cultural, mediante o racismo, a homofobia, ao antifeminismo disfarçado e nem por isso ostensivo. Há muitas provas de que os cristãos evangélicos [que não ultrapassam 20% população dos EUA], constituintes do núcleo da ‘maioria moral’, aceitaram a aliança com os grandes negócios e o Partido Republicano como meio de promoção do seu programa evangélico-moral. Percebeu-se um movimento intelectual neoconservador bem financiado, congregados em torno de Irving Kristol e Norman Podhoretz, além da revista Commentary, que conferiam credibilidade as teses que esposaram a moralidade e os valores tradicionais.

Os neoliberais, assim como os ‘neocons’ [neoconservadores] que os promoveram, foram ambos favoráveis ao poder corporativo, à iniciativa privada e à restauração do poder de classe. O neoconservadorismo foi compatível com o programa neoliberal de governança pela elite, desconfiança à democracia e manutenção das liberdades de mercado. Os ‘neocons’ remodelaram práticas neoliberais em dois sentidos: [a] na preocupação com a ordem como resposta aos caos de interesses individuais e [b] na preocupação com uma moralidade inflexível como cimento social necessário à manutenção da segurança do corpo político. O caos dos interesses individuais pode se sobrepor à ordem, ou seja, a anarquia do mercado, da competição e do individualismo sem peias gera uma situação cada vez mais ingovernáveis. Diante disso, algum grau de coerção parece ser necessário à restauração da ordem. Os neoconservadores são aqueles que enfatizam assim a militarização como remédio para o caos dos interesses individuais. Nos Estados Unidos, isso desencadeou ‘o estilo paranóico da política americana’, no qual a nação se descreve como sitiada e ameaça constantemente por inimigos internos e externos.

O neoconservadorismo, portanto não é algo novo, e desde a Segunda Guerra Mundial tem sua residência particular num poderoso complexo industrial-militar que tem seus interesses escusos na permanente militarização, afirmou David Harvey em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”. O fim da Guerra Fria evocou a origem da ameaça à segurança norte-americana, mas o islamismo e a China surgiram como os dois candidatos concorrentes externos. Internamente, o Ramo de Dravidiano incinerado em Waco, os movimentos de milicianos que deram apoio ao bombardeio de Oklahoma, as revoltas populares que se seguiram ao espancamento de Rodney King em Los Angeles e, por fim, os distúrbios que estouraram em Seattle em 1999, todos se tornaram alvos de uma vigilância e um policiamento mais intenso. Não resta dúvida de que o neoconservadorismo existe como um movimento não declarado contra a ‘permissividade moral’ que o individualismo costuma gerar. Assim, ele procura restaurar um sentido de propósito moral, alguns ‘valores de ordem superior’ que constituam o centro estável do ‘corpo político’. Esses ‘valores morais’ traduzem-se na coalizão específica construída na década de 1970 nos EUA, entre os interesses dos negócios que se dispunham a restaurar o poder de classe da elite em contraposição a uma base eleitoral de certa ‘maioria moral’, branca, de trabalhadores, ressentida.

Trata-se de ‘valores morais’ centrados no nacionalismo cultural, na retidão moral, no cristianismo [em geral de orientação evangélica] nos valores familiares e em questões relativas ao ‘direito à vida’, bem como no antagonismo a novos movimentos sociais pautados pelo feminismo, direitos homossexuais, a ação afirmativa e ao ambientalismo. Nos Estados Unidos, essa afirmação de ‘valores morais’ tem se apoiado fortemente em apelos aos ideais de nação, religião, tradição cultural e coisas do tipo. Recobre-se um dos mais perturbadores aspectos da neoliberalização – a curiosa relação entre Estado e nação. Decerto que o Estado neoliberal precise de algum tipo de ‘nacionalismo’ para sobreviver. O Estado mobilizara o nacionalismo em seu esforço de sobrevivência, ao operar com agente competitivo no mercado mundial e estabelecendo climas favoráveis para os negócios. Grosso modo, a competição inevitavelmente produz vencedor e vencidos por uma posição na luta global, o que em si torna-se uma fonte de orgulho nacional.

‘Neocons’ se distinguem do ‘fundamentalismo’ apenas porque, geralmente, como aparece na mídia, esse termo se reduz a variedade de formações sociais que se referem exclusivamente ao ‘fundamentalismo islâmico’. De todo modo, os neoconservadores não deixam de ser uma espécie de ‘fundamentalismo norte-americano’, pois tanto se apresentam como movimentos contra a modernização social quanto estimulam a recriação do que imaginam ser uma formação social do passado, com base em textos sacros, de acordo com Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro “Império”. A agenda social cristã nos EUA tem centrado esforços na recriação do núcleo familiar estável e hierárquico, voltando-se contra o aborto e o homossexualismo, sobretudo orientada por um projeto de supremacia branca e pureza racial. É verdade, pureza racial e integridade familiar nuclear [heterossexual] nunca existiram nos Estados Unidos. A ‘família tradicional’ que lhes serve de fundamento ideológico é simplesmente um ‘pastiche de valores e práticas’ que derivam mais de programas de televisão do que de qualquer experiência histórica real.

Ao interrogar a evolução cultural norte-americana desvelam-se dois princípios norteadores: a concepção puritana da vida e o sucesso da sociedade capitalista, até porque as grandes inovações nos EUA, até a década de 1940, foram o jazz e o cinema totalmente integrados a indústria de massa. A ‘modernização’ da cultura americana ocorreu ao pós-guerra, quando houve o colapso das pequenas cidades, a emergência de um novo urbanismo, a explosiva expansão universitária, a emergência dos intelectuais de Nova York como árbitros culturais, o aumento de uma audiência de classe média e, sobretudo com o predomínio protestante no modo de vida norte-americano.

Retrata-se a passagem do Western – misterioso, melodramático, mas repleto de aventuras, numa narrativa que equilibra os personagens, a ação, o enredo, os ambientes aos interesses comerciais –, aos formatos dramatúrgicos articulando o gosto popular à narrativa, assim a audiência encontrou satisfação e segurança emocional numa ‘forma familiar’, familiaridade que decorre da repetição sempre de um novo exemplo de uma experiência passada, mas com um sentido a se esperar, segundo John Cawelti em seu livro “Adventure, Mystery and Romance”. Resulta daí um casal de ‘classe média baixa’ assistindo televisão. Ele, um funcionário qualquer, e ela, dona-de-casa. Malvestidos, ela parece mais velha do que ele, mas todos os dois são reprimidos, mas a TV os transporta para fora de casa, conversam sobre o trivial. Evidentemente pessoas como essas só poderiam possuir uma vida medíocre. Casal ‘careta’ e ‘conservador’. Eles estão assistindo a um telejornal.

Crisis, Delirium, NY

As batalhas urbanas surgidas na década de 1970 corresponderam à crise do poder de classe capitalista, neste caso, a ‘crise fiscal’ de Nova York foi paradigma. Havia anos que a reestruturação capitalista, a desindustrialização e a rápida suburbanização vinha corroendo a base econômica da cidade, deixando boa parte do centro da cidade empobrecida. Daí resultou uma insatisfação social explosiva de grande parte de populações marginalizadas na década de 1960, esboço do que viria a ser designado por ‘crise urbana’, algo semelhante que ocorria em muitas cidades norte-americanas. Uma solução ocorreu com generosos recursos federais, facilitando a expansão do emprego público e dos serviços públicos. Mas no começo da década de 1970, Richard Nixon simplesmente declarou que a crise urbana havia acabado. Assim ele pôde assinalar, com efeito, a redução da ajuda federal.

Desde então, uma acelerada recessão ampliou a distância entre receitas e despesas no orçamento da cidade de Nova York, cada vez maior devido aos descontrolados empréstimos tomados durante anos. No começo, as instituições financeiras supriram essa carência, mas a partir de 1975, um grupo de banqueiros, liderado por Walter Wriston do Citybank, recusou-se a rolar a dívida e acabou levando a cidade à bancarrota técnica. O resgate que se seguiu envolveu a construção de novas instituições que assumiram a administração do orçamento da cidade e tinham total liberdade de gestão, privilegiando em primeiro lugar o pagamento dos acionistas, enquanto o resto empregava-se me serviços essenciais. O efeito disso foi derrubar as aspirações dos sindicados, congelar salário, cortar emprego público, manter alguns serviços sociais básicos [educação, saúde] e impor cobranças de taxas aos usuários: o sistema universitário da CUNY – City University of New York – passou a cobrar a partir de então. Felix Rohatyn, o banqueiro que negociou o acordo entre a cidade, o Estado e as instituições financeiras talvez não tivesse em mente a restauração do poder de classe, mas a única maneira que ele pôde ‘salvar’ a cidade foi satisfazer os banqueiros e reduzir o padrão de vida da maioria da população de Nova York. Mas, lamentavelmente, foi exatamente a restauração do poder de classe que isso tudo acarretou.

O desemprego alcançou a faixa de 10% em meado da década de 1980, tornou-se propício o momento de atacar todas as formas de trabalho organizado e retirar todos os seus privilégios. A transferência da atividade industrial das regiões Nordeste [a de Nova York] e Meio-Oeste para os estados não-sindicalizados e ‘bons para o trabalho’ do Sul, quando não para o México e o Sudeste Asiático, foi se tornando uma prática padrão dos neoliberais. A desindustrialização das regiões industriais centrais antes sindicalizadas [como no ‘cinturão da ferrugem’] minou o poder do trabalho, de acordo com David Harvey em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”. As corporações podiam ameaçar com o fechamento as fábricas, mesmo com o risco de greves. O controle do trabalho e a manutenção de um grau elevado de exploração não deixavam de ser componentes essenciais da neoliberalização, acrescente-se a isso o papel do Estado, que tende a reduzir o financiamento em áreas de assistência à saúde, ensino e assistência social, deixando segmentos crescentes da população ao empobrecimento.

Nesta esteira neoliberal dissiparam muitas conquistas da classe trabalhadora em Nova York, boa parte da infra-estrutura social e física da cidade começou a deteriorar por falta de investimento e de manutenção, como por exemplo, o sistema de transporte subterrâneo, assim a atmosfera de Nova York começava a ficar tenebrosa e opressiva. O governo da cidade, o movimento trabalhista municipal, a classe trabalhadora do município, em geral, todos foram privados de grande parte do poder que detinha. Assim a classe trabalhadora de Nova York aceitou a nova realidade, mesmo com relutância. Buscava-se na realidade criar um clima favorável aos negócios como prioridade em Nova York. Dessa forma, recursos públicos passaram a estimular a criação de infra-estruturas adequadas aos negócios, em particular no setor de telecomunicações. Paulatinamente, instituições de elite da cidade se mobilizaram para vender uma nova imagem de Nova York, mas agora como centro cultural e turístico, sob o famoso logotipo que se inscreve ‘I Love New York’.

As elites dirigentes apoiaram a abertura do campo cultural a toda modalidade de diferentes correntes cosmopolitas, a partir da exploração narcisista do ego, da sexualidade, da identidade, como leitmotiv da cultura burguesa urbana. A ‘Nova York Delirante’, da frase de Rem Koolhaas, apagou a memória coletiva da Nova York democrática, onde as elites até aceitaram a diversificação dos estilos de vida e o aumento de nichos de consumidores, mas para tornar-se o epicentro da experimentação cultural e intelectual pós-moderna. Com isso, os banqueiros reconstruíram a economia municipal em torno de atividades financeiras, serviços auxiliares como assistência jurídica e meios de comunicação, mas principalmente da expulsão dos moradores pobres, que se tornou proeminente e lucrativa, através dos empreendimentos imobiliários destinados à classe média [‘gentrificação’] e a ‘restauração de bairros decadentes’.

A administração da cidade passou a ser concebida cada vez mais como entidade empreendedora, em vez de social ou democrática. A Nova York de classe trabalhadora e étnico-imigrante foi lançada às sombras e foi afetada pelo racismo e por uma epidemia de crack na década de 1980. Ela deixou muitos jovens mortos, encarcerados ou sem teto, e os sobreviventes foram mais tarde assolados pela epidemia de AIDS surgida na década de 1990.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Wall Street Chaos


O surgimento de um complexo Wall Street-Tesouro nos Estados Unidos, capaz de controlar instituições como o FMI e projetar um vasto campo de forças financeiro pelo mundo, mediante uma rede de instituições financeiras e governamentais, teve enorme influência sobre a dinâmica do capitalismo global em anos recentes. Esse poder central só pôde agir como agiu porque o resto do mundo formava uma rede e estava integrado num arcabouço estruturado de instituições financeiras e governamentais. O quadro geral que surgiu daí foi de um mundo entrelaçado por fluxos de capital excedente com conglomerados de poder político e econômico em pontos-chave [Nova York, Londres, Tóquio] que buscavam desembolsar ou absorver os excedentes de modo produtivo ou usar o poder especulativo para livrar o sistema da sobreacumulação mediante a promoção de crises de desvalorização em territórios vulneráveis, conforme David Harvey em seu livro “O Novo Imperialismo”. Foram os pobres das regiões rurais do México, da Tailândia e do Brasil que mais sofreram com as depreciações causadas pelas crises financeiras das décadas de 1980-90.

Os Estados Unidos se constituíram numa economia rentista em relação ao mundo e numa economia de serviços no plano doméstico. Internacionalmente, o capital financeiro mostrou-se cada vez mais volátil e predatório. Surtos de desvalorização e destruição de capitais ocorriam, em geral pela imposição dos programas estruturais do FMI, como antídoto para a incapacidade de manter a fluidez da acumulação do capital por meio da espoliação. As lutas de classes começaram a se concentrar ao redor desses ajustes estruturais, das atividades predatórias do capital e da perda de direitos gerada pela privatização. Mas as crises da dívida em diversos países foram úteis para reorganizar as relações sociais de produção internas em cada país, o que foi favorecendo a penetração dos capitais externos. Regimes, mercados de produtos e empresas domésticos floresceriam obrigados à absorção por empresas norte-americanas, japonesas e européias. Evidenciou-se em toda parte resistências em relação ao poder complexo Wall Street-Tesouro-FMI. Entretanto emergiu um movimento mundial ‘antiglobalização’, metamorfose de um movimento de ‘globalização alternativa’, com forte apoio de base. ‘Movimentos populistas’ contra a hegemonia norte-americana partem de potências, antes docilmente subordinadas, na Ásia e América Latina: quando se ameaça transformar uma resistência de base numa série de resistências lideradas pelo Estado à hegemonia norte-americana.

Como foi impressionante o intenso apoio aos Estados Unidos, que chegou a 2,3 bilhões de dólares por dia no começo de 2003. Qualquer outro país do mundo que apresentasse semelhante condição macroeconômica estaria a essa altura submetido à austeridade e aos procedimentos estruturais do FMI. Mas o FMI são os Estados Unidos. Acontece que a guerra no Iraque não custou muito mais que 200 bilhões de dólares. O petróleo iraquiano poderia ser expropriado para pelo menos financiar os custos de uma guerra. Tudo indica, entretanto que seria preciso vários anos para que a produção petrolífera do Iraque voltasse ao nível capaz de financiar, ao menos teoricamente, tanto o custa da guerra como o redesenvolvimento do país. A única opção dos EUA foi aprofundar suas dívidas para financiar a guerra. Esses déficits com propósitos militares lançaram a sua economia numa recessão sem precedentes. A perda de empregos e de proteções sociais [como os seguro-saúde e mesmo os fundos de pensão] reverbera em todos os setores da economia norte-americana. A economia da cidade de Nova York, por exemplo, acha-se hoje em situação bem pior do que no período da crise de 1973-5, e seu déficit orçamentário parece caminhar para lançá-la em falência técnica dentro de bem poucos anos.

Bolhas, Papéis, Títulos... Capital Fictício


Para que um fenômeno fosse capaz de fortalecer o poder financeiro dos Estados Unidos, no sentido de forçar a abertura de mercados para fluxos de capital, financeiros, e impor outras práticas neoliberais, Richard Nixon acionou uma dupla estratégia, durante o período da crise de 1973: aumentar o preço do petróleo e desregulamentação financeira. Quando se concedeu aos bancos norte-americanos o direito exclusivo de reciclar petrodólares, acumulados na região do Oriente Médio, com efeito, recentrou a atividade financeira global nos EUA e subsidiou as reformas internas do sistema financeiro naquele país para que tentar salvar Nova York de sua crise econômica local. Resta um forte regime financeiro governado por Wall Street/Tesouro dos Estados Unidos, que chegaram a deter poderes de controle sobre instituições financeiras globais, como o FMI, e desfazia e refazia muitas economias estrangeiras mais fracas por meio de manipulação de crédito e práticas de gerenciamento de dívida.

Não resta dúvida de que o poder financeiro tenha trazido muitos benefícios diretos aos Estados Unidos, mas os efeitos em sua estrutura industrial foram nada menos que catastróficos. As ondas de desindustrialização que ocorreram no interior dos EUA afetavam, no começo, a produção de bens de baixo valor, como os têxteis, mas passo a passo atingiram a escala do valor adicionado em setores como o aço e os estaleiros e alcançaram as importações de alta tecnologia, especialmente vindas de regiões do leste e sudeste asiático. Enfim, os Estados Unidos foram cúmplices do aniquilamento de suas manufaturas ao desencadear os poderes financeiros por todo o globo. Por volta de 1980, ficou claro que os Estados Unidos tornaram-se uma complexa economia que expunha sua produção num ambiente global e competitivo. A única maneira de os norte-americanos sobreviver era alcançar a superioridade na produtividade e no desenvolvimento dos problemas, em suma, os Estados Unidos já não eram hegemônicos.

O neoliberalismo como doutrina político-econômica, em linhas gerais, data do final da década de 1930, e se iniciou como um conjunto de pensamento ativo, ainda que inicialmente ignorado nos Estados Unidos, desenvolvido por pesquisadores como Friedriech von Hayek, Ludwig von Mises, Milton Friedman. Somente após a crise [1929] ter-se tornado mais aguda é que o movimento neoliberal foi levado mais a sério, como alternativa ao arcabouço keynesiano e de outras estruturas mais centradas no Estado. Talvez tenha sido Margaret Thatcher, em união com Ronald Reagan, quem transformou toda a orientação da atividade do Estado, que abandonou a busca do bem-estar social e passou a apoiar ativamente as condições do ‘lado da oferta’ da acumulação do capital. Daí em diante, o FMI e o Banco Mundial mudaram seus parâmetros de política da noite para o dia, em poucos anos a doutrina liberal fez sua curta e vitoriosa marcha sobre as instituições e passou a dominá-las. Como a privatização e a liberalização do mercado foram o mote do movimento neoliberal, a ‘expropriação das terras comuns’ transformou-se numa política do Estado, segundo David Harvey em seu livro “O Novo Imperialismo”. Ativos de propriedade do Estado ou destinados ao uso partilhado com a população foram, em geral, entregues ao mercado para que o capital sobreacumulado pudesse investir, valorizar e especular com eles. Na Inglaterra, a subsequente privatização dos serviços, a liquidação de empresas públicas e a moldagem de muitas outras instituições públicas de acordo com uma lógica comercial levaram à radical redistribuição de ativos que favoreceu cada vez mais as classes altas do que as baixas.

A corporativização e privatização de bens até agora públicos [como as universidades], acrescente-se a isso a privatização [da água e de utilidades públicas] que tem varrido o mundo indicam uma nova era de ‘expropriação das terras comuns’. Percebe-se que a transformação de formas culturais, históricas e de criatividade intelectual em mercadoria envolve espoliações em larga escala. A biopirataria campeia e a pilhagem do estaque mundial de recursos genéticos beneficiam poucas grandes companhias farmacêuticas. A ênfase nos direitos de propriedade intelectual nas negociações da OMC [o designado Acordo TRIPS] aponta para maneiras pelas quais o patenteamento e o licenciamento de material genético, do plasma de sementes de todo tipo de outros produtos podem ser usados agora contra populações inteiras cujas práticas tiveram um papel vital no desenvolvimento desses materiais. A privatização é essencialmente, portanto uma transferência de ativos públicos produtivos do Estado para empresas privadas. Figuram entre os ativos produtivos os recursos naturais: terra, florestas, água, ar. O Estado neoliberal buscou tipicamente expropriar as propriedades coletivas, privatizar e instaurar uma estrutura de mercados abertos de mercadorias e de capitais, em cujos lucros são fabricados capitais fictícios, antecipações de créditos, juros exorbitantes que encharcaram as vias, os dutos financeiros de guetos dourados como Hong Kong, São Paulo, mas inundavam megalópoles como Tóquio e Londres, em especial, os bancos de Nova York, até explodirem-se como uma ‘bolha fictícia’ assentada em ‘papéis podres’: o limite de algumas instituições financeiras – um colapso financeiro no fim da ‘era W. Bush’.

Greenwich Village, New Law Tenements


Fluxo do êxodo e solo de comunidade multicultural, o Greenwich Village, em Nova York, tornou-se a quintessência do centro urbano, misturando grupos e estimulando indivíduos a diversidade. Os habitantes do Greenwich Village foram considerados quase fundidos, de tão próximos, por Jane Jacobs em seu livro “The Dark and Life of Great American Cities”. Na MacDougal Street, os turistas limitavam-se aos olhares dos italianos, que conversavam entre si, das lojas de andar térreo para as janelas dos edifícios em frente, sem se importar com os transeuntes. Hispânicos, judeus e coreanos zanzavam na Segunda Avenida, mas além dela cada grupo se guardava em seu próprio território, encerrando-se numa ‘comunidade étnica’. O individualismo moderno sedimentou o silêncio dos cidadãos na cidade. A rua, o café, os magazines, o trem, o ônibus e o metrô são lugares para se passar a vista, mais do que cenários destinados a conversações. A dificuldade dos estrangeiros manterem um diálogo entre si acentua a transitoriedade dos impulsos individuais de simpatia pela paisagem ao redor. Por curiosidade, uma ordem de comando idêntica àquela de Veneza para encerrar os judeus determinou que, em Nova York, eles fossem proibidos de emprestar dinheiro aos negros. Mas, no século XIX, os guetos da grande metrópole não tinham caráter nem identidade próprios. O Lower East Side era pobre, mas muito misturado etnicamente; Little Italy, nos anos 20, abrigava irlandeses, eslavos, e até hoje contém tanto asiáticos quanto italianos; no auge da ‘Renascença do Harlem’, ali residiam mais gregos e judeus do que negros.

Porém, no extremo leste, onde Greenwich Village se espraia à grande pobreza de Lower East Side, a história é outra, lá se concentram viciados de ambos os sexos, que contraíram a doença devido à partilha de agulhas, e mulheres que se infectaram na prostituição. AIDS e drogas confundiram-se na Rivington Street, por exemplo, cujas construções abandonadas serviam de esconderijo aos viciados. Se o problema da droga não sensibiliza os moradores, menos ainda causam os sem-teto, denunciou Richard Sennett em seu livro “Carne e Pedra”. No Village, eles dormem nas ruas próximas da Washington Square. Por volta de 1970, Washington Square, muitos adolescentes dormiam ao relento, embalados por cantores folk que competiam entre si, despreocupados com a presença dos sem-teto. Washington Square tornou-se uma espécie de ‘supermercado da droga’: ao norte da faixa de areia dos balanços das crianças situa-se um ponto de vendas de heroína e os bancos, junto à estátua de Stanley, expõem-se diversas pílulas; nas quatro esquinas da praça a cocaína foi comercializada em grandes quantidades.

A história do multiculturalismo ganhou muito com esse tecido urbano camaleônico. Os imigrantes se amontoavam nas áreas de pobreza, principalmente em Lower East Side e atrás das docas, no West Side de Manhattan, e no extremo leste do Brooklin. Confluência de diversas misérias, as chamadas Law Tenements haviam sido projetadas com espaços interiores bem iluminados e ventilados, mas as melhores intenções dos arquitetos cairiam por terra diante de uma densidade populacional tão imprevisível. Quando pobreza e funções mal remuneradas, drogas e criminalidade reaparecem nos subúrbios, esmaecem-se as esperanças de uma vida familiar segura e estável, assim o desejo de fugir renasce.

Nova York voltou a crescer depois da Segunda Guerra Mundial, principalmente com os trabalhos de Robert Moses, que encarava a malha urbana de forma arbitrária, desconhecendo qualquer obrigação de manter ou melhorar o que seus antecessores haviam feito; assim, ele construiu pontes, parques, portos, praias e auto-estradas. Dotada de um dos sistemas de transporte mais complexos do mundo, Moses favoreceu tanto a locomoção individual nos automóveis que chegou a ameaçar a viabilidade de tudo que já existia em Nova York. Para ele, as auto-estradas eram meios facilitadores, e não projetos destrutivos. O propósito de Robert Moses era desfazer a diversidade. A massa impactante da população parecia-lhe uma pedra a ser esfacelada, ao ponto de a fragmentação da cidade ser a condição do ‘bem público’. Deste modo, Moses agiu de modo seletivo, apenas para os bem-sucedidos, que dispunham dos meios de escapar, fugir; as pontes e vias expressas tornaram-se uma salvação do barulho dos grevistas, mendigos e desempregados que enchiam as ruas de nova York, durante a Grande Depressão.

A geometria de Nova York é constituída por uma rede interminável de quarteirões idênticos, como um tabuleiro de xadrez em expansão; em 1811, as terras acima de Greenwich Village já estavam urbanizadas e em 1855 o complexo demográfico estendia-se além de Manhattan, em direção ao norte do Bronx e a leste do Queens. Um turista pode suspeitar que o centro de Nova York fique em torno do Central Park, mas Calvert Faux e Frederick Law Olmsted deram partida à sua construção em 1857. Teoricamente, a ausência de um ponto central e limites indefinidos possibilitam múltiplos locais de encontro. Mas o que a sua falta de direcionamento realmente prevê é ainda mais facilidade para se demolir todos os obstáculos de pedra, vidro ou ferro erigidos no passado. As grandes mansões da Quinta Avenida foram construídas, habitadas e destruídas, cedendo lugar a edificações mais altas. Hoje, apesar de já se cuidar do patrimônio histórico, os arranha-céus são projetados e financiados por uma duração estimada de cinquenta anos. De todas as cidades do mundo, Nova York foi a que mais cresceu à custa de demolições.

Rules of the Western Ranch


A Constituição norte-americana deve ser entendida como um regime material de interpretação e prática jurídica não só exercido por juristas e juízes, mas por elementos de toda a sociedade. De Thomas Jefferson e Andrew Jackson, numa primeira etapa da Constituição, o espaço aberto da fronteira torna-se o terreno conceitual de uma ‘democracia republicana’. Um terreno que estava livre nos EUA das formas de centralização e hierarquia típicas da Europa: um terreno ilimitado, aberto ao desejo da humanidade, onde o limite passa a ser uma fronteira de liberdade. Neste caso, liberdade e fronteira implicam-se reciprocamente, porque todo o obstáculo posto à independência era o mesmo que um limiar a se transpor. A soberania imperial, a democracia republicana, precisaria superar barreiras e limites, tanto dentro dos seus domínios como nas fronteiras. Essa superação contínua faria o espaço imperial manter-se aberto.

Os Estados Unidos pôde se imaginar como vazio, mas ignorando deliberadamente da existência dos nativos. Deste modo, conceberam esses nativos sob uma ordem diferente de seres humanos, subumanos, parte do ambiente natural. Pois não é que serviu a metáfora da terra que se quer produzir para agricultura, deve-se despojá-la das árvores e das pedras, assim o terreno deve ser escoimado dos seus habitantes nativos. Os nativos não poderiam ser integrados no movimento da fronteira como parte da tendência constitucional, ele tinham de ser excluídos a fim de abrir espaço e tornar possível a expansão. Os nativos existiram fora da Constituição, sua exclusão e eliminação foram condições essenciais para o próprio funcionamento da Constituição norte-americana. Enquanto os nativos ficaram fora da Constituição, os afro-americanos foram, desde o começo, nela incluídos. Os norte-americanos nativos puderam ser excluídos porque a nova república não dependia do seu trabalho, mas a mão-de-obra negra era um esteio essencial dos novos Estados Unidos: afro-americanos foram incluídos na Constituição, mas não podiam ser incluídos em pé de igualdade. A escravidão negra, um prática herdada das potências coloniais, era uma barreira intransponível para a formação de um povo livre.

Desta forma, o republicano ianque não deixa de ser um povo recém-chegado, um povo em êxodo preenchendo os novos territórios vazios. Os escravos afro-americanos não puderam ser completamente incluídos nem completamente excluídos. A escravidão negra foi uma exceção à Constituição e um dos seus fundamentos. O debate sobre a escravidão estava inextricavelmente vinculado às discussões sobre os novos territórios. O que estava em jogo era uma redefinição do espaço da nação, segundo Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro “Império”. Discutia-se se o êxodo livre da multidão, unificada, numa comunidade plural, poderia continuar a desenvolver-se, a aperfeiçoar-se, e a realizar uma real configuração do espaço público. De que modo compreender os efeitos desse êxodo e comunidade multicultural, se Greenwich Village tornou-se a quintessência do centro urbano, misturando grupos e estimulando indivíduos a diversidade. É possível compreender que, ao contrário do Harlem ou do South Bronx, o Greenwich Village foi marcado por um ‘quadro de etnias’ – italianos, judeus, gregos – que conviveram, numa espécie de ágora moderna, no centro de Nova York?