terça-feira, 20 de outubro de 2009

Senatus Ultimum: Honduras a Zelaya? [5]


A essa pergunta que ainda incomoda Honduras: caso Zelaya retorne ao poder, quem o reempossaria? O judiciário ou o legislativo? Acontece que Roberto Micheletti, em seu afã de conquistar o poder através da suspensão do direito ou do estado de exceção, destronou dois poderes num só golpe: o executivo de Zelaya e o judiciário. Se Zelaya executa a lei, se o judiciário obedece a lei, em contrapartida Roberto Micheletti representa um vazio de direito no momento da suspensão das leis. E o legislativo, o senado?

Há um instituto do direito romano que pode ser considerado o arquétipo do moderno Ausnahmezustand e que talvez, justamente por isso, não tenha recebido atenção suficiente: o iustitium, segundo Giorgio Agamben em seu livro “Estado de Exceção”. Quando tinha notícia de uma situação que punha a República em perigo, o Senado emitia um senatus consultum ultimum por meio do qual pedia aos seus cônsules, pretores, tribunos da plebe e, no limite, a cada cidadão, que tomassem qualquer medida considerada necessária para a salvação do Estado. Esse senatus-consulto tinha por base um ‘decreto’ que declarava o tumultus: situação de emergência provocada por uma guerra externa, uma insurreição ou uma guerra civil, e dava lugar à proclamação de um iustitium edicere ou indicere. Destaca-se a guerra civil que proliferou a partir do estado de exceção (iustitium) imposto por Micheletti em Honduras, entretanto ressalta-se a confusão que houve entre seu estado e uma ditadura.

Theodor Mommsen, no último volume do Staatsrecht, definiu o senatus-consulto como uma ‘quase ditadura’, introduzida no sistema constitucional no tempo dos Gracos: no último século da República, a prerrogativa do Senado de exercer sobre os cidadãos um direito de guerra nunca foi seriamente contestado. Mas Adolphe Nissen interpretou, primeiramente, o senatus consultum ultimum, a declaração do tumultus e o iustitium sistematicamente ligados: o consultum pressupõe o tumultus, enquanto o tumultus é a causa do iustitium. No sintagma senatus consultum ultimum há um valor técnico repetido para definir a situação que justifica o consultum e a vox ultima; a convocação dirigida a todos os cidadãos para a salvação da república. Ultimus deriva de uls, que significa ‘além’, desse modo, o significado de ultimus é o que se encontra absolutamente além, o mais extremo. Em relação a que o senatus consultum ultimum se situa em tal dimensão de extremidade? Em relação à ordem jurídica que, no iustitium, é de fato suspensa. Senatus consultum ultimum e iustitium marcam o limite constitucional (desde a ordem constitucional romana). Antecipa-se, logo, ao assinalar a função última e além, que compete ao senado em uma República, através do senatus-consulto. Mas onde fica o jurídico? Esvaziado por um magistrado posto de lado por sua própria suspensão do direito. Logo o senatus seria o poder que daria de volta, caso isso ocorre, ao Manuel Zelaya, não o judiciário, por quê?

Trata-se do sentido paradoxal do instituto jurídico, que consiste na produção de um ‘vazio jurídico’.

A contraposição formal entre tumultus, que é decretado pelo Senado, e o iustitium, que deve ser declarado por um magistrado, supondo-se que o iustitium era tido como uma suspensão integral do direito, segundo Middel essa tese era excessiva, porque o magistrado não podia libertar-se sozinho da obrigação das leis, embora o magistrado agisse com base em um estado de perigo que autorizava a suspensão do direito. Aqui reside a 'penalização' do jurídico e não do senado hondurenho, portanto o estado de exceção em Honduras foi iustitium e não tumultus. Resulta daí, que o iustitium não pode ser interpretado pelo paradigma da ditadura. No iustitium, mesmo declarado por um ditador, não existe criação de nenhuma nova magistratura – o poder ilimitado, dos que gozam ‘de fato’ iusticio indicto (os magistrados existentes), resulta não da atribuição de um imperium ditatorial, mas da suspensão das leis que tolhiam sua ação. Nessa perspectiva, o estado de exceção não se define, segundo o modelo da ditadura, como uma plenitude de poderes, mas, sim, de um vazio e de uma interrupção do direito. Essa foi a sensação comum dos hondurenhos e de muitos de nós para definir a situação do golpe - entre ditatorial ou estado de exceção, às vezes, estado de sítio. Entende-se hoje que foi um golpe de estado, mas de exceção, de suspensão dos direitos e não de uma ditadura, embora as Forças Armadas hondurenhas tenha mantido um papel fundamental neste golpe. Ressalta-se que o estado de exceção (iustitium)está correlacionado com o senatus-consulto e com o tumultus. O que leva a crer, então, que o judiciário (iustitium) é predeterminado pelo tumultus (guerra civil), sob o qual reside a manifestação do senatus-consultum. Iustitium significa estado de exceção (suspensão do direito), uma vez 'desfeito', como parece no caso de Honduras, desfez-se a participação do judiciário. Resta ao legislativo... limite último?

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