domingo, 4 de outubro de 2009

Zelaya [4]: o Golpe (fictio) e a Embaixada


O que ocorreu com a diplomacia brasileira em Honduras? Esta não é uma questão muito simples, não por causa do bordão jornalístico de oposição sobre o qual reside a manifestação de que a diplomacia não deveria nunca imiscuir-se em assuntos internos de outro país. A natureza da diplomacia está, primeiramente, nas relações internacionais, não nacionais. O mecanismo diplomático moderno, no fim da Guerra de Trinta Anos, após as negociações do Acordo de Vestfália, era atribuído aos diplomatas, embaixadores, que negociassem explicitamente os novos traçados das fronteiras, as novas divisões dos Estados, as novas relações estabelecidas entre os Estados e os Impérios, as zonas de influência dos países mais forte: tudo isso sobre o princípio do equilíbrio entre diferentes Estados europeus. Como arquitetar esse equilíbrio de forças sem interferir internamente nos países? Entretanto é coerente essa argumentação liberal, opositora em todo caso em Honduras e no Brasil, pois trata-se de um ponto referencial da técnica diplomática, mas da Idade Média e não moderna.

Compreende-se a Guerra Medieval, como uma guerra com comportamento essencialmente jurídico ou judicial, de acordo com Michel Foucault em seu livro “Segurança, Território, População”. Fazia-se guerra quando havia uma injustiça, uma violação de direito ou quando alguém pretendia certo direito que era contestado por outro. Na guerra medieval privada, não havia nenhuma descontinuidade entre o universo do direito privado, no qual se tratava de liquidar litígios, e o mundo do direito, que ainda não podia se chamar de direito público ou internacional, mas era o mundo dos enfrentamentos dos príncipes. Estava-se sempre na liquidação do litígio, dessa forma os opositores-liberais não concebem o problema de Honduras como um caso de diplomacia, de direito público e internacional, mas um problema corriqueiro entre déspotas, príncipes, na esfera dos litígios de direito privado. Era a guerra privada que adquiria uma dimensão pública, ou uma guerra pública como uma guerra privada. O Golpe de Honduras não deixa de ser visto pela direita conservadora no Brasil, como uma espécie de ‘guerra de direito’: guerra liquidada com um procedimento jurídico, por meio de uma vitória que provenha de um julgamento de Deus, ou seja, Zelaya perdeu porque o direito não estava do seu lado. As novas técnicas diplomático-militares são investidas caso os Estados estejam, postos uns ao lado dos outros, numa relação de concorrência, assim encontra-se um sistema que permita limitar o máximo possível a mobilidade de todos os outros Estados; sua ambição, sua ampliação, seu fortalecimento, deixando aberturas sem provocar seus adversários e sem acarretar seu próprio desaparecimento ou enfraquecimento, o que ocorre em parte com Honduras e a causa, logicamente, da intervenção diplomática do Brasil no país. A questão-problema é que a diplomacia brasileira vem dialogando com o poder político-jurídico hondurenho e não com os militares que dão sustentação [auctoritas] a Micheletti, que tornam efetivamente o governo de Honduras autoritário.

Quando Zelaya deu a ordem aos generais para fazerem o plebiscito mesmo contra a decisão da Justiça, eles correram a consultar uma equipe de advogados. Foram informados de que ao obedecerem à ordem presidencial e desafiarem a Justiça, estariam violando a Constituição, segundo um artigo de Reinaldo Azevedo intitulado “Alternância de Poder e Constituição Neles!”, publicado na Veja de 07 de outubro de 2009. Tantas atitudes poderiam ser tomadas que não fosse simplesmente depor um presidente, uma vez a Justiça não permitindo o plebiscito, forças poderiam apenas ter impedido o ato, sem ‘cortar a cabeça’ do príncipe? Sem barbárie. O que ocorreu nestas interpretações, jurisprudências, hermenêuticas jurídicas que levou Zelaya a ser deposto? Sem recorrer ao fato de que as Forças Armadas preferiram, logo, outra inconstitucionalidade, a de abandonar Zelaya na Costa Rica, de pijamas. Trata-se de uma Guerra de Direitos à la Idade Média, do modo que se descreveu acima e não de um dispositivo diplomático-militar que se aproxime do moderno equilíbrio de Estados, conforme o direito internacional de Vestfália? Conflito entre príncipes ou soberanos baseado num direito privado que se torna público, mas que ninguém deveria se intrometer? Acontece que o significado do estado de exceção mostra sua estrutura original, em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão, que aparece claramente no abandono de Manuel Zelaya, do mesmo modo que apareceu na ‘military order’, promulgada pelo presidente dos Estados Unidos no dia 13 de novembro de 2001, por exemplo, mas que autoriza a ‘indefinite detention’ e o processo perante as ‘military commissions’ dos não cidadãos de envolvimento em atividades terroristas, conforme Giorgio Agamben em seu livro “Estado de Exceção”. O USA Patriot Act, promulgado pelo Senado no dia 26 de outubro de 2001, permite manter preso o estrangeiro suspeito de atividades que ponham em risco a segurança nacional dos EUA. Aconteceu no Patriot Act, na Military Order, e também com Manuel Zelaya; crime é o que é punido pela lei, e ponto final? Pelo menos para os neoliberais, de acordo com Michel Foucault em seu livro “Nascimento da Biopolítica”, o crime é toda a ação que faz um indivíduo correr o risco de ser condenado a uma pena, eles se colocam do ponto de vista de quem comete ou vai cometer o crime. Mas para um sujeito de uma ação, para o sujeito de uma conduta, ou de um comportamento, o que é o crime? Crime é aquela coisa que faz com que ele corra o risco de ser punido pela lei.

Se os homens soubessem o que é o Bem ou se soubessem a ele se confrontar, não precisariam da lei. A lei é apenas o representante do Bem num mundo que ele de certa forma abandonou, afirmou Gilles Deleuze em seu livro “Sacher-Masoch”. Obedecer à lei é o melhor, sendo este 'melhor' a imagem do Bem. O justo se submete as leis no país que nasce e em que vive, ele age assim para o melhor, mesmo guardando sua liberdade de pensar o Bem. Na Crítica da Razão Prática de Kant, a novidade do seu método está em que a lei não depende mais do bem, ao contrário, o Bem é que depende da lei. Isso significa que a lei deve valer por si mesma e se fundar em si mesma, que ela não tem outra fonte a não ser a sua própria forma. A imagem clássica da lei não é a representação de uma pura forma independente de um conteúdo e de um objeto, de um domínio e de circunstâncias, afinal isto caracteriza A Lei (a forma da lei), que exclui qualquer princípio superior capaz de fundá-la. Kant cria uma imagem propriamente moderna da lei: consiste em fazer girar o Bem em volta da Lei. Trata-se, portanto, no caso de Honduras de dois fósseis discursivos no âmbito da manutenção do Estado de Exceção instaurado por Roberto Micheletti: 1] A ideia de ‘guerra de direitos’ medieval, através da qual questiona-se o ato diplomático da embaixada brasileira, dando ‘asilo’ a Zelaya; 2] A ideia moderna, não clássica, de Lei, agora sim, que pune Zelaya não porque fez o plebiscito, mas que, uma vez comunicado ao Exército, o faria, caso o fizesse, isto ainda não era uma reeleição, seria apenas uma consulta, ou seja, a lacuna que se distancia entre o plebiscito e a reeleição de Zelaya, ao torpor da hermenêutica jurídica hondurenha, configurou a possibilidade do crime, ou melhor, crime porque fazia com que Zelaya corresse o risco de ser punido pela lei. À suspensão, portanto, à exceção... entre o que Zelaya iria fazer e o que Micheletti fez: o desdobramento normativo do direito no estado de exceção, direito que pode ser impunimente eliminado e constestado por uma violência governamental que, ao ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito. É isto, pois o que Roberto Micheletti afirma, quando diz que instaurou um estado de exceção em Honduras, é, pois o que ele faz não reconhecendo o direito internacional, diplomático, em especial, brasileiro. Exatamente isso, exceção..

A exceção medieval representa uma abertura do sistema jurídico a um fato externo, uma espécie de fictio legis pela qual, no caso, se age como se a escolha do bispo tivesse sido legítima, mas o estado de exceção moderno é, ao contrário, uma tentativa de incluir na ordem jurídica a própria exceção, criando uma zona de indiferenciação em que fato e direito coincidem. É o estado de exceção, essencialmente um espaço vazio, onde uma ação humana sem relação com o direito está diante de uma norma sem relação com a vida, de acordo com Giorgio Agamben, trata-se de uma máquina com seu centro vazio que continuou a funcionar quase sempre sem interrupção a partir da Segunda Guerra, por meio do fascismo e do nacional-socialismo até nossos dias revoltantes em Honduras. Se é possível deter a máquina, mostrar sua ficção central, é porque entre violência e direito, vida e norma, não existe articulação substancial.

A política sofreu um eclipse duradouro porque foi contaminada pelo direito, concebendo-se a si mesma, no melhor dos casos, como poder constituinte, quando não se reduz simplesmente a poder negociar com o direito. Ao contrário, verdadeiramente política é apenas aquela ação que corta o nexo entre violência e direito.

Artigo 239
Artigo 272
Artigo 373
Artigo 374
Artigo 102
... forma-lei em sua vigência sem significado da Constituição de Honduras, aprovada democraticamente em 1982, ampara legalmente [auctoritas] um Estado de Exceção? E a Guerra Civil? Manifesta e explosiva através da legitimação da potência do povo, da potestas, ao mesmo tempo, emanada pela maioria dos eleitores de Zelaya, sob seu carisma weberiano? Creio que não seja bem assim, isto é, distingue-se, pois, primeiro, o que é democracia, depois o que será esse autoritarismo michelettiano: fictio.

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