domingo, 4 de outubro de 2009

Zelaya [3]: Corpo Duplo, Auctoritas/Potestas


A potência é o modo através do qual o ser se funda soberanamente, ou seja, sem nada que o preceda e determine, senão o próprio poder não ser. Soberano é aquele ato que se realiza simplesmente retirando a própria potência de não ser, deixando-se ser, doando-se a si. Enfim, a soberania é sempre dúplice, porque o ser se auto-suspende mantendo-se, como potência, em relação de bando [ou abandono] consigo, para realizar-se então como ato absoluto, que não pressupõe, digamos, nada mais do que a própria potência. Potência pura e ato puro são indiscerníveis, e esta zona de indistinção é justamente o soberano. Abandonar é remeter, confiar ou entregar a um poder soberano, e remeter, confiar ou entregar ao seu bando, isto é, à sua proclamação, à sua convocação e à sua sentença: expelido do país, Zelaya retorna clandestinamente e bravamente para ser reconduzido ao poder nos braços do povo ou ele proclamou a insurreição desde o dia em que voltou para Honduras, numa operação patrocinada pelo presidente da Venezuela, nas palavras de Thaís Oyama, em Veja de 07 de outubro de 2009. Se Zelaya está certo ou se correta está a atitude de Micheletti, ou se o Brasil em sua diplomacia criou um palanque eleitoral? São questões menores para o meu objetivo que é definir os traços do Estado de Exceção em Honduras e chegar a ver se são pertinentes ou não. Deste modo, Zelaya é quem foi banido, não Micheletti, assim ser banido não significa estar submetido a certa disposição de lei, segundo Giorgio Agamben, mas estar submetido à lei como um todo: entregue ao absoluto da lei, o banido é também abandonado fora de qualquer jurisdição. O abandono respeita a lei, não pode fazer de outro modo.

A soberania é, de fato, precisamente esta ‘lei além da lei à qual somos abandonados’, ou seja, o poder autopressuponente da lei [nómos], e somente se conseguirmos pensar o ser do abandono além de toda ideia de lei, poder-se-á dizer que saímos do paradoxo da soberania em direção a uma política livre de todo bando. Além de toda ideia de lei: como pensaríamos, pois o abandono de Zelaya se a Constituição de Honduras, no artigo 102, tenha falhado nas mãos de Micheletti? Ou seja, o artigo que dispõe que nenhum hondurenho poderá ser expatriado, abandonado, nem entregue a autoridades estrangeiras?

No final dos anos de 1950, Ernst Kantorowicz, publicou nos Estados Unidos The king’s two bodies, a study in medioeval political theology: a obra era uma obra-prima e a concepção de um ‘corpo místico’ ou ‘político’ do soberano, que se reconduzia constituiu uma etapa importante da história do desenvolvimento do estado moderno – ‘a doutrina jurídica dos dois corpos do rei’. Trata-se, sobremaneira, da ‘teologia política cristã’ que se destinava, através da analogia com o corpo místico de Cristo, a assegurar a continuidade daquele corpus morale et politicum do estado, sem o qual nenhuma organização política estável poderia ser pensada; e é neste sentido que não obstante as analogias com certas concepções pagãs esparsas, a doutrina dos dois corpos do rei deve-se considerar germinada a partir do pensamento teológico cristão e coloca-se portanto como uma pedra miliar da teoria política cristã. Sem desconsiderar a 'macabra ironia' de Ricardo II chegar a reconstruir a formação, na jurisprudência e na teologia medieval, da doutrina dos dois corpos do rei, Kantorowicz descreveu as cerimônias fúnebres dos reis franceses nas quais a efígie de cera dos soberanos ocupara um posto importante, tratada como a pessoa viva do próprio rei. Ou quando o exército romano estava quase derrotado pelos adversários latinos, o cônsul Públio Décio Mure, que comandava as legiões junto ao colega Tito Mânio Torquato, pede ao pontífice que o assistia na realização do rito: o pontífice lhe ordena que vista a toga pretexta e estando o cônsul de pé sobre a lança, com a cabeça velada e a mão estendida sobre a toga de modo a tocar o queixo, faz com que ele pronuncie estas palavras: ‘Ó Juno, ó Júpiter, ó pai Marte, ó Deuses... então, cingindo a toga ao modo gabínio, monta a cavalo em armas e se lança em meio aos inimigos, e parece a ambas as fileiras bem mais venerável que um homem, semelhante a uma vítima expiatória. Duas uma: se o homem, que foi assim votado morre, isto está em conformidade com o devido; mas se ele não morre, é preciso então sepultar uma imagem [signum] com sete pés de altura e imolar em expiação uma vítima. O signum ocupa o posto de cadáver ausente, seu duplo em uma espécie de funeral per imaginem. Sobrevivência embaraçosa do devoto que constitui para a comunidade uma situação embaraçosa: Qual o estatuto deste corpo vivente que não parece mais pertencer ao mundo dos vivos? Se o devoto sobrevivente é excluído tanto do mundo profano quanto do sagrado, isto ocorre porque esse homem é homo sacer. No caso de Honduras, o homo sacer é esse vivente embaraçoso que retorna, não morre, esse ‘devoto’ Manuel Zelaya, entretanto a imagem do pontífice traduz-se quando Micheletti respondeu a Thaís Oyama uma pergunta final: o senhor parece bem-disposto para alguém que está a frente de uma crise que já dura três meses. Micheletti responde: sabe por quê? Porque Deus está comigo.

Carl Scmitt, autor de Politsche Theologie, tentou definir o poder neutro do soberano no Estado de Exceção contrapondo, dialeticamente, auctoritas e potestas. Ele lamentava a falta de tradição da moderna teoria do Estado que opõe autoridade e liberdade, autoridade e democracia, até confundir a autoridade com a ditadura.

Já em 1928, em seu tratado de direito constitucional, mesmo sem definir a oposição, Schmitt evocava sua grande importância na doutrina geral do Estado e remetia para sua determinação ao direito romano: o senado tinha a auctoritas, mas é do povo que dependia potestas. A auctoritas não basta a si mesma: seja porque autoriza, seja porque ratifica, supõe uma atividade alheia que ela valida. Tudo se passa, analisa Giorgio Agamben em seu livro “Estado de Exceção”, como se para uma coisa poder existir no direito, fosse necessária uma relação entre dois elementos [dois sujeitos, Zelaya e Micheletti]: aquele que é munido de auctoritas [Micheletti] e aquele que toma a iniciativa do ato em sentido estrito [Zelaya]. Se os dois elementos ou os dois sujeitos coincidirem, então o ato será perfeito [caso Zelaya alterasse a constituição, por exemplo, ou fizesse o referendo]. Se houver, ao contrário, entre eles uma distância, o que realmente houve, será necessário introduzir a auctoritas para que o ato seja válido [o golpe de Estado, não a reeleição]. No direito público, auctoritas designa uma prerrogativa do Senado, dos patres, dos patres auctores: alusão perfeita ao Presidente do Congresso Nacional de Honduras, Roberto Micheletti. Auctoritas e potestas são claramente distintas e formam juntas um sistema binário: a auctoritas parece agir como uma força que suspende a potesta onde ela agia e a reativa onde ela não estava mais em vigor – é uma força que suspende ou reativa o direito, mas não tem vigência formal como direito. O que aconteceu com Honduras? O poder de reativar a potesta vacante não é um poder jurídico recebido do povo ou de um magistrado, mas decorre inteiramente da condição dos patres. Só podemos compreender esse conceito de auctoritas ou a partir do direito romano do período do principado ou como conceito fundamental do direito público nos Estados modernos autoritários.

Trata-se, pois de reler a teoria dos dois corpos do rei de Kantorowics, sob essa imagem dicotômica entre auctoritas e potestas. O soberano é a encarnação de uma auctoritas, ou seja, a qualidade de Duce e de Führer estão ligadas à pessoa física e pertencem à tradição biopolítica da auctoritas e não à tradição jurídica da potesta. Schmitt definiu o princípio da Führung por meio da identidade de estirpe entre chefe e seguidores, afinal o Führer é definido por meio de categorias psicológicas e sua unidade com o grupo social bem como o caráter original e pessoal de seu poder são fortemente enfatizados, a sua autoridade nunca é derivada, mas é sempre original a sua pessoa,além disso, nunca é coercitiva, baseia-se, pois no consenso e no reconhecimento de uma ‘superioridade de valores’. O que acontece com os líderes em Honduras? Qual a relação de potestas e Zelaya, auctoritas com Micheletti? Ressalta-se o autoritarismo de Micheletti e a potência insurgente do povo e do carisma de Zelaya? Acontece que o estado de exceção é o dispositivo que articula e mantém juntos os dois aspectos da máquina jurídico-política, instituindo um limiar de indecidibilidade entre anomia e nomos, entre vida e direito, entre auctoritas e potestas.

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