terça-feira, 3 de novembro de 2009

Micheletti e um tal Bartleby [Honduras IV]



Para compreender a violência revolucionária, certamente Slavoj Zizek chega a analisar as relações de poder, mas não para encontrar o seu ponto de aplicação em focos de resistências, num viés foucaultiano; em sua hermenêutica, o que ele se ocupa, frequentemente, é com o 'excesso de poder' e com o seu 'avesso obsceno', enfim com a Lei e sua transgressão. Utilizam-se como referência, neste sentido e para os textos que se seguem, dois de seus livros: “A Visão em Paralaxe” e “A Marioneta e o Anão”, para nos ajudar a entender a lógica jurídica que formou uma espécie de Theatrum Politico em Honduras, desde a instituição do ‘Estado de Exceção’ por Roberto Micheletti em meado de 2009. Ao passo que Giorgio Agamben, em suas análises jurídicas, filosóficas, políticas e também, por assim dizer, filológicas, contribui com sua compreensão do poder através não da resistência nem do seu excesso, mas da 'suspensão do direito', através das perspectivas delineadas em seus livros “Estado de Exceção” e “Homo Sacer”. Objetiva-se, então, redimensionar o ‘Evento hondurenho’ em seu ‘espectro democrático’ estruturado, em termos gerais, a partir do excesso de poder, da transgressão da Lei e da suspensão dos direitos.

Não resta dúvida de que vivemos um processo sem precedentes onde as grandes ‘questões públicas’ são retraduzidas em questões sobre a regulamentação das idiossincrasias mais íntimas (naturais, pessoais) e a postura diante delas. Na falta de um ‘erro’ ou de um ‘crime’ suficiente para punir um indivíduo, vasculham-se suas características próprias, individuais,  singulares e, em muitas vezes, recorre-se a seu passado, a sua classe, etc. Diz-se isto para rememorar que, como ter um bigode, usar um chapéu ou ser fazendeiro no âmbito da política hondurenha, nos últimos tempos tornou-se um conjunto de hábitos, um estereótipo que causou repúdio e estranhamento na oposição (liberal, democrática, direitista) e em seu porta-voz talvez mais querido, os mass media. Refere-se em Honduras ao próprio espetáculo do paradoxo democrático em rede planetária: quanto mais se reivindicam liberdades individuais, mais o privado se torna público: como essas espécies de programas de tevê que discutem os problemas familiares e pessoais, tornando a esfera privada cada vez mais pública; como na videopolítica de Nestor García Canclini em seu livro “Consumidores e Cidadãos”, onde o espaço público torna-se cada vez mais midiatiziado, neste caso, a ‘Crise em Honduras’ democratizava-se ao mesmo tempo em que o golpe se tornava um artefato midiático.

Distingue-se, pois, a democracia, que pressupõe, pelo menos, um mínimo de alienação (os que exercem o poder só podem ser responsáveis pelo povo se houver uma distância mínima de representação entre eles e o povo) do totalitarismo, que elimina essa distância (supõe-se que o Líder represente diretamente a vontade do povo, mas o povo é também alienado, mas em seu Líder, assim como o Líder é o que o povo ‘realmente é’, sua identidade, seus desejos e interesses). O que incomoda no totalitarismo é que há um ‘momento de verdade’: o ‘vínculo social perverso’ no qual o pervertido sabe o que o outro realmente quer. Mas a democracia é ‘encenada ou simulada’ à distância do Estado. Se ela questiona o Estado e convoca a ordem estabelecida a prestar contas, isso não ocorre para se livrar do Estado, mas para ‘melhorá-lo’ ou atenuar seus efeitos malévolos. Nesta arena ou campo de forças entre essas duas concepções, vê-se digladiar, respectivamente, Manuel Zelaya (o Líder) e Roberto Micheletti (em sua distância mínima).

A democracia torna o destino de um país dependente dos caprichos de uma minoria que pode influenciar a votação e a convicção correspondente de um agente político de que a sua missão se fundamenta na visão de um verdadeiro estado de coisas qualquer: o resultado e os ingredientes necessários da ‘lógica democrática’ descreve-se em sua pretensão a uma posição privilegiada, que rejeita as próprias regras democráticas, o que só é possível dentro do espaço democrático. No nível da identidade simbólica, todos os sujeitos são iguais, logo, eles podem ser substituídos um pelo outro. Esse igualitarismo democrático se apresenta com uma espécie de ‘justiça igualitária’, na medida em que é sustentada pela inveja, baseia-se na inversão da renúncia-padrão (feita para beneficiar os outros): “estou disposto a renunciar para que os outros também não tenham ou não possam ter!” Essa lógica igualitária baseada na renúncia e na inveja foi propalada por Micheletti ao longo desse ‘estado de exceção’ hondurenho. Afinal, quem não se lembra de sua postura “renuncio se Zelaya não assumir o poder”? Em linhas gerais, essa ‘idiossincrasia michelettiana’ não deixa de ser uma ‘atitude termidoriana’, traduzida pela lei dialética hegeliana, que diz: a tarefa histórica fundamental que exprime naturalmente a orientação de um bloco político só pode ser cumprida pelo bloco oposto. Em todo caso, o pedido de “renúncia de Zelaya com a suposta automática renúncia de Micheletti” não se traduz melhor do que como o ‘bluff do outro’? Ou seja, como no mote de Maio de 1968: “Sejamos realistas, peçamos o impossível!” Com um pedido impossível de se satisfazer, sabe-se perfeitamente que a reivindicação não será satisfeita, assim tem-se a certeza de que nada mudará, mantendo-se o atual estatuto privilegiado.

Enquanto Manuel Zelaya e seus seguidores optaram pela renúncia à violência ou por uma ‘agressão passiva’, numa recusa a participar do golpe, como no famigerado gesto de Bartleby (‘preferiria não’), no entanto Roberto Micheletti seguiu na sua ‘passividade agressiva’, em que ficou o tempo todo ativo para garantir que nada acontecesse e que nada mudasse de verdade. ‘Política de Bartleby’, portanto, que se exerceu uma mudança em algo, mas para nada, ou melhor, deslocou-se de uma lacuna entre dois ‘algos’ (entre Zelaya e Micheletti) para uma lacuna que separa algo (Zelaya) de nada, do vazio de seu próprio lugar (presidência de Honduras). Trata-se da fonte e o pano de fundo de uma nova ordem, ou de seu fundamento permanente; desde que Zelaya retornou a Honduras (‘abandonado’ na Embaixada Brasileira), a ‘sua’ estratégia não cessou de minar as resistências, de dizer não às resistências a seus correligionários, porque elas só ajudariam o sistema de governo michelettiano a se reproduzir; essa é apenas uma alusão ao “Bartleby” de Melville, ou seja, Zelaya esteve mais para o Bartleby, em sua ‘agressão passiva’, podendo dizer seu ‘não’ em Honduras, na imagem que tanto incomodou a mídia: deitado num sofá, com seu chapelão sobre o rosto, na Embaixada Brasileira, sem poder fazer nada... é porque Bartleby não mataria mesmo nem uma mosca. Parece-nos que a estratégia de Zelaya tendeu, em todas as etapas do golpe (desde a sua mobilidade em busca de apoio aos países até a sua ‘quase-inércia’ na Embaixada do Brasil em Honduras), a uma ‘agressão passiva’ que mais se aproximou, mesmo em seu limite, a uma idealizada ‘política de Bartleby’, ao negar o estado de coisas instaurado em Honduras, por seu turno, Micheletti agiu e não queria mudar nada, em sua política da ‘agressividade passiva’.

Destaca-se o paradoxo da Lei que se baseia no excesso constitutivo da representação para além do representado. No plano da Lei, o Poder estatal apenas representa os interesses de seus sujeitos (serve a eles, responde a eles e está sujeito ao seu controle), mas é complementada pela mensagem pública e obscena do exercício incondicional do Poder: ‘as leis na verdade não me restringem, posso fazer com vocês o que eu quiser, posso tratá-los como culpados se assim decidir, posso destruí-los se assim quiser... ’ Se esse excesso obsceno (‘espere só o que vai lhe acontecer! ’) é o constituinte necessário da noção de soberania. Mas acontece que a Lei só pode manter sua autoridade se os ‘súditos’ ouvirem nela o eco da auto-afirmação obscena incondicional. Decerto, Roberto Micheletti se esforçou para motivar ou convencer os cidadãos hondurenhos através dessa ‘ameaça soberana’, desse núcleo obscuro ou ‘excesso obsceno’ que complementa e dá significado às leis. Percebe-se que Micheletti fracassou nessa tentativa, porque a população (a maioria fadada ao governo de uma minoria, comum ao regime democrático) ao invés de dar o eco incondicional para a auto-afirmação do ‘golpe de Micheletti’, disse um ‘preferiria não’, mesmo translúcido, opaco e às vezes inaudível. Micheletti não conseguiu manter o seu afetuoso ‘estado de direito’, porque ele só pode ser mantido por um poder soberano que se reserva o direito de proclamar um ‘estado de exceção’, ou seja, de suspender o estado de direito em nome da própria lei, privando a Lei do excesso que a sustenta, o que não tardou perder/perverter a própria Lei (o próprio estado de direito).

Com efeito, o golpe em Honduras acabou destruindo o próprio ‘estado de direito’ que queria sustentar, manifestou-se, no em seu lugar, um poder que se apresenta como se estivesse o tempo todo sob ameaça, que vive sob um perigo mortal e apenas se defende – é o tipo de poder mais perigoso, ressentido e hipócrita. Com a finalidade de restituir o ‘estado de direito’ democrático, o que era para ser tornar um ‘estado de exceção’ pareceu mais um ‘estado de emergência’(sob a cristã tradição paulina): ‘como se’ fosse um estado de exceção; ‘como se’ fosse um ‘estado de sítio’ e, principalmente, em guerra contra seus cidadãos e numa posição que parecia obscena e ilegal. Essa sensação de ‘estado de emergência’ pode ter sido o elemento que confundiu tanto especialistas quanto jornalistas na hora de designar que tipo de estado realmente estava sendo implantado em Honduras ao mesmo tempo em que sua posição ‘obscena e ilegal’ tornou-se uma opinião hegemônica, na qual se tratava de um golpe antidemocrático, difundida entre organizações supranacionais (como a ONU), Estados-nacionais e instituições diversas em todo o mundo.

Julgamento-paulino [Honduras III]



A situação mais difícil em Honduras é como ignorar um ‘estado normal’ que Roberto Micheletti procura impor, sem deixar de perceber que ele coincide e se traveste de um típico ‘estado de emergência’. O presidente de fato ou interino não parou de declarar: ‘tudo está sob controle’, ‘sigam as instruções’ e ‘prossigam a vida normal’, entretanto o que se vivia era um ‘estado de exceção’. De um lado, o estado de exceção, que não é uma negação do reino da Lei nem a sua destruição, mas o próprio gesto que a funda. De outro lado, o ‘estado de emergência’ judaico-paulino, a suspensão da imersão ‘normal’ na vida cotidiana No funcionamento ‘normal’ da vida a imposição da Lei engendra um ‘dano colateral’: a sua própria transgressão, o seu próprio excesso.

Ninguém em Honduras deixou de perceber que era preciso se habituar diariamente com a ameaça de uma catástrofe pronta para explodir em suas cabeças, como se estivesse introduzindo um ‘estado de emergência permanente’. Aparentemente nota-se que um ‘estado de exceção’ se realizava, mas que a população hondurenha promovia uma violência contra um ‘estado de emergência’, o que de fato deu certo, ou seja, todos se sentiram convidados a ‘participar de prontidão’ de um ‘golpe de estado’ (de emergência) no qual precisamente o poder afirma o domínio que exerce sobre os cidadãos: os hondurenhos escaparam de tal poder que se aplicava sobre eles, afirmaram um ‘preferiria não’.

Que Lei ‘louca’ [incondicional kafkiana] que se sustenta ao antecipar que todos são culpados sem mesmo saber de quê? Esta Lei é a meta-Lei, a Lei do ‘estado de emergência’, em que a ordem do direito é suspensa – a Lei ‘pura’, a forma da ordem/interdição ‘como tal’, o enunciado de uma injunção privada de qualquer conteúdo, conforme Slavoj Zizek em seu livro ‘A Marioneta e o Anão’. Nesta esteira, os hondurenhos disseram este ‘preferiria não’ através do pressuposto implícito da Lei: a própria lei engendra o desejo de a violar; a lei proibitiva como elemento que engendra o desejo transgressivo; a instauração de interditos nos levam a gozar a sua violação, mesmo que isso nos leve a uma conclusão perversa desmoralizante, mas a transgressão não se elevou ao estatuto de norma, como o estado que a circundava, ela se manteve exceção.

Toda essa dialética da transgressão e da lei conduz a uma interpretação sobre a relação entre a morte de Cristo e o pecado. Se observarmos a morte de Cristo como um sacrifício, ela é uma consequência do fato de nós, humanos, sermos culpados devido aos nossos pecados. Mas Deus nos enviou Cristo, aquele que não pecou, para que morresse, em sacrifício, em nosso lugar. Através do sangue derramado por Cristo, Deus nos perdoa e nos liberta da danação. Interpretação legalista esta, afinal há um pecado que é preciso pagar e, ao pagar o nosso pecado no nosso lugar, Cristo redimiu-nos (fazendo de nós seus devedores para sempre). Essa leitura sacrificial apresenta o gesto de Cristo surgindo no interior do qual, não só Cristo, mas qualquer um gostaria de triunfar, no interior do horizonte em que morremos por ele, nos identificamos imediatamente com ele: no interior da Lei [a culpa, a expiação, o pecado e o preço a pagar por ele], a morte de Cristo só pode surgir como a afirmação absoluta da Lei – como a elevação da Lei ao estatuto de instância todo-poderosa que nos esmaga, a nós, seus sujeitos, com uma culpabilidade e uma dívida que nunca poderemos pagar. Apela-se para o ‘amor’ com sua máscara de ‘Lei infinita’, que se ultrapassa a si mesma. Uma Lei que já não impõe proibições ou injunções específicas e determinadas (faça isso ou faça aquilo), mas repete simplesmente uma interjeição ‘vazia’: ‘não...’ Uma Lei em que tudo é simultaneamente proibido e autorizado, embora seja obrigatório.

Não resta dúvida que essa interpretação não cabe em nada a Manuel Zelaya, afinal ele não só não está morto como ele é o único que não poderia morrer. Essa interpretação legalista da morte de Cristo é inteiramente pertinente ao ‘povo hondurenho’ que morreu, sob o qual Zelaya, paradoxalmente, em seu íntimo, passa a manter seu débito, a sua dívida infinita, enquanto os mortos, torturados e vítimas, em geral, desse ‘golpe medonho’ triunfam, sempre, como aqueles que morreram, inocentes, por seu Líder ou, por assim dizer, pelo seu ‘ídolo’, em sua ‘idolatria’. Trata-se de três regimes legalistas: [1] Roberto Micheletti: a ‘lei incondicional kafkiana’ que se revela como uma injunção abstrata que fez de ‘todos’ (hondurenhos, principalmente os ‘zelaystas’) culpados precisamente por não saberem do que eram culpados, em geral, visível num epicentro da culpa: eram culpados por serem adeptos do governo zelaysta? Eram culpados por estarem se rebelando contra o governo de Micheletti? Eram culpados por que, de fato, cometeram crimes? Que crimes cometeram para ser culpados?; [2] o povo hondurenho: sob a interpretação legalista da morte de Cristo, o seja, quem triunfa morre, mas quem sobrevive é ‘acochado’ por uma ‘dívida infinita’, neste caso invertem-se os papéis, quem sobrevive é o Líder e quem morre (paga a pena, sofre o martírio, o ‘bode expiatório’) é o povo; [3] Manuel Zelaya: trata-se, em princípio, do ‘Julgamento Negativo de São Paulo’, mas, com efeito, de uma ‘Lei Judia’.

O Retorno do Wargus [Honduras II]



O Julgamento Negativo de São Paulo sobre a Lei pode ser descrito da seguinte forma: nenhuma carne será justificada diante de Paulo pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado (a punição). Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Por isso Cristo nos resgatou da maldição da lei. Portanto, quando diz Paulo que ‘a letra mata’ e o espírito vivifica, esta letra é precisamente a Lei. Entre os luteranos, Rudolf Bultman ressaltou que o esforço do homem para obter a sua salvação obedecendo à Lei só pode conduzi-lo ao pecado; na realidade, esse próprio esforço já é, no fundo, um pecado. A Lei traz à luz o fato de o homem ser um pecador, ou porque o seu desejo culpado o leva a transgredir a Lei, ou porque esse desejo se disfarça em zelo para manter a Lei, conforme Slavoj Zizek em "A Marioneta e o Anão". Considerar que Manuel Zelaya será ‘julgado’ ou ‘submetido’ pelo poder legislativo ou Congresso Hondurenho pressupõe que ele, lógico, duas uma, ou será condenado ou absolvido. Trata-se, nesta análise, apenas sobre a hipótese de ele ser absolvido ou de se estruturar uma defesa contra, talvez, ‘um crime que nem bem ele saiba se cometeu ou se ia cometer’ (às duras penas da Lei incondicional kafkiana de Micheletti). Neste caso, parte-se do princípio do ‘Julgamento Negativo de Paulo’, que destaca o ‘crime’ (o pecado) na própria Lei, imanente a ela, por isso a Lei mata ou pune.

Em seguidaí, com efeito, destaca-se alguns aspectos da ‘Lei Judia’: se, através da Lei, os judeus viveram na diáspora, logo mantiveram certa distância relativa à sociedade no seio da qual vivem, então a Lei Judia é fundada num gesto de ‘desprendimento’. A Lei Judia não é uma lei social altamente reguladora (das trocas sociais, dos fluxos comerciais, etc.), mas uma lei que introduz outra dimensão: a da ‘justiça divina’. A ‘justiça divina’ não é o restabelecimento de um equilíbrio, como processo inexorável do Destino, que restabelece o equilíbrio perturbado pela hubris humana. A ‘justiça judia’ é a visão do estágio final, em que serão anuladas todas as injustiças infligidas aos indivíduos. Quando os judeus ‘se desligam’ em diáspora e mantêm certa distância relativamente à sociedade em que vivem, não fazem isso em nome de uma identidade substancialmente diferente... os ‘judeus’ são, de fato, ‘desenraizados’, a sua Lei é abstrata, sem dúvida, é ela que os extrapola da substância social. Que atributos pertencem a Manuel Zelaya para ser julgado sob um paradigma legal judaico? Primeiramente, não resta dúvida, ele não é um judeu diasporizado distante da sua sociedade, mas também Zelaya não abandonou o poder e saiu rumo a Costa Rica e peregrinou entre palácios de governos na América Latina em busca de apoio, por livre e espontânea vontade. Manuel Zelaya não foi refugiado nem exilado, talvez, o termo correto seja ‘abandono’, na acepção de Giorgio Agamben em “Homo Sacer”, ‘abandono’ ou ‘bando soberano’. Entende-se que qualquer lei que se submeta à manifestação do ‘abandono’ deve se modelar através do ‘gesto de desprendimento’ da lei Judia.

O ‘desligar’ de Zelaya, como o dos judeus, não ocorreu por uma ‘identidade diferenciada’, mas por forças externas que provieram do ato histérico e precipitado da Corte Jurídica e/ou de Micheletti. Em seguida, não se trata do Congresso Hondurenho julgar mais uma vez Manuel Zelaya, até que realmente se prove alguma coisa contra ele [até porque qual o crime que se comete em Honduras que se justifica no abandono, sob a insígnia do wargus, do homem-lobo?]. O que o Congresso Hondurenho só pode fazer é estabelecer o que designa ‘estágio final’ na justiça judia ou na ‘justiça divina’, qual seja: a anulação da injustiça que se infligiu aos indivíduos, nesse caso, o ‘abandono’(ou a expulsão da comunidade, aberto a todos, livre, remetido à própria separação, entregue à mercê de quem o abandonou, dispensado e, ao mesmo tempo, capturado). A questão é a de não se admitir a hipótese de que a ‘cabeça’ de Zelaya esteja à disposição de um Congresso, muitas vezes articulado com o presidente interino Micheletti, principalmente nesses ‘estados de exceção’ mutiladores; afinal trata-se de conceder o writ Habeas Corpus, modelado, nessa interpretação, pela ‘justiça divina’ da Lei Judia: o Habeas Corpus tem a função de garantir a liberdade física do súdito, isto é, que nenhum homem livre seja detido, aprisionado, despojado de seus bens, nem, principalmente, 'posto fora da lei' ou molestado de modo algum: "nós não poremos nem faremos por as mãos nele, a não ser após um juízo legal de seus pares e segundo a lei do país". Em analogia, um antigo writ que precede o Habeas Corpus era destinado a assegurar a presença do imputado em um processo, o que leva a rubrica de homine replegiando (ou repligiando). O Habeas Corpus é um procedimento jurisdicional voltado à proteção da liberdade individual. O que nos assusta em Honduras é exatamente como se ignorou esse procedimento até agora [Zelaya somente voltou a Honduras com o apoio da e na Embaixada Brasileira], já que o Habeas Corpus recebeu forma de lei e se tornou inseparável da história da democracia ocidental? Trata-se, sobretudo, de muita acuidade em se tratando das relações obscuras entre o Congresso e o Executivo num ‘estado de exceção’. Essa é a maior preocupação nesta hora que, em 30 de outubro de 2009, estabeleceu-se o retorno ao poder do presidente deposto, Manuel Zelaya, mas a restituição ficou nas mãos do Congresso e da Suprema Corte da Justiça.

Acts e Plenos Poderes [Honduras I]



Reconhece-se, com frequência, nos ‘estados de exceção’, em particular, a progressiva erosão dos poderes legislativos de Parlamentos que se limitam a apenas a ratificar disposições promulgadas pelo executivo sob a forma de decretos com força de lei. Acontece que uma das características essenciais do estado de exceção é a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário, o que demonstra a sua tendência em se transformar numa prática duradoura de governo. Problema técnico essencial, cuja extensão dos poderes executivo no âmbito do legislativo (por meio da promulgação de decretos e disposições) não deixa de ser uma consequência da delegação contida em leis ditas de ‘plenos poderes’.

O lugar, por exemplo, lógico e pragmático, de uma teoria do estado de exceção na constituição norte-americana está na dialética entre os poderes do presidente e os do Congresso, conforme ressaltou Giorgio Agamben em seu livro "Estado de Exceção". A base textual do conflito está, antes de tudo, no art. 1 da Constituição, o qual estabelece que o ‘privilégio do writ do Habeas Corpus não será suspenso, exceto se, em caso de rebelião ou de invasão, a segurança pública o exigir’; mas ele não define qual é a autoridade competente para decidir sua suspensão (embora a opinião dominante permita presumir que a cláusula seja dirigida ao Congresso e não ao presidente). Durante a guerra civil, entre 1861-1865, no dia 27 de abril de 1861, Abraham Lincoln autorizou o chefe de estado-maior do exército a suspender o writ de habeas corpus, sempre que considerasse necessário, ao longo da via de comunicação entre Washington e Filadélfia, onde haviam ocorrido desordens. Lincoln impôs uma censura sobre o correio e autorizou a prisão e detenção em cárceres militares das pessoas suspeitas de ‘disloyal and treasonable practices’, em 1862 estendeu o estado de exceção a todo o território dos Estados Unidos, enfim, a relação entre presidente e Congresso, de fato, foi apenas ratificar os atos de Lincoln. O presidente Woodrow Wilson concentrou em sua pessoa, durante a Primeira Guerra Mundial, mais poderes ainda mais amplos que aqueles que se arrogaram a Abraham Lincoln. Ao invés de ignorar o Congresso, como fez Lincoln, ele preferiu, a cada vez, fazer com que o Congresso lhe delegasse os poderes em questão. De 1917 a 1918, o Congresso aprovou uma série de Acts [do Espionage Act de junho de 1917 ao Overman Act de maio de 1918] que atribuíram a Wilson o controle total da administração do país. Outro exemplo, foi o de Franklin D. Roosevelt, desde quando no New Deal foi delegado ao presidente um poder ilimitado de regulamentação e de controle, sobre todos os aspectos da vida econômica do país. Neste sentido fica mais fácil compreender porque no ‘estado de exceção’ a suspensão do direito acaba por fundar novas leis.

Espera-se que no caso de Zelaya, o ‘estado de exceção’ não se defina nessa ‘assimetria de poder’ entre Congresso e Executivo, ou se não, então que se traduza na concepção ‘carnavalesca’ de Bakhtin ou nas ‘festas anômicas’ de Karl Meuil: uma zona em que a máxima submissão da vida ao direito se inverta em liberdade e licença; em que a anomia mais desenfreada se mostre em paródica conexão com o nomos. Que Manuel Zelaya seja recebido em Honduras sob uma dessas ‘festas anômicas’ que dramatizam uma irredutível ambiguidade com os ‘sistemas jurídicos’ e que ao mesmo tempo mostrem que o que está em jogo na dialética entre essas duas forças é a própria relação entre o direito e a vida. Que se celebrem e que se  reproduzam, como uma paródia, a anomia em que a lei se aplica ao caos e à vida, sob a única condição de tornar-se ela mesma, no estado de exceção, vida e caos vivo.

De todo modo, como evitar ser acusado por nossa fraqueza, mas, principalmente, como evitar também de correr o risco de se tornar um bode expiatório, designado responsável por todos os nossos excessos? Talvez seja esta a maior de todas as questões que pairam no pensamento de Manuel Zelaya nesses últimos dias. Não resta dúvida, talvez as únicas questões que nenhum de nós cansou de refletir foram: como uma pessoa boa se torna má? Como uma democracia se torna uma ditadura? Enfim, nesses casos, como um ato diplomático não pode se furtar do gesto clássico de Antígona? Em outros termos, a diplomacia necessita sair, em certos casos, da esfera do domus e atingir a esfera da polis? Por que a democracia liberal brasileira, paradoxalmente, não reconheceu um gesto deste como legítimo, circunscrevendo um ato diplomático ideal apenas na escala doméstica?