terça-feira, 3 de novembro de 2009

Acts e Plenos Poderes [Honduras I]



Reconhece-se, com frequência, nos ‘estados de exceção’, em particular, a progressiva erosão dos poderes legislativos de Parlamentos que se limitam a apenas a ratificar disposições promulgadas pelo executivo sob a forma de decretos com força de lei. Acontece que uma das características essenciais do estado de exceção é a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário, o que demonstra a sua tendência em se transformar numa prática duradoura de governo. Problema técnico essencial, cuja extensão dos poderes executivo no âmbito do legislativo (por meio da promulgação de decretos e disposições) não deixa de ser uma consequência da delegação contida em leis ditas de ‘plenos poderes’.

O lugar, por exemplo, lógico e pragmático, de uma teoria do estado de exceção na constituição norte-americana está na dialética entre os poderes do presidente e os do Congresso, conforme ressaltou Giorgio Agamben em seu livro "Estado de Exceção". A base textual do conflito está, antes de tudo, no art. 1 da Constituição, o qual estabelece que o ‘privilégio do writ do Habeas Corpus não será suspenso, exceto se, em caso de rebelião ou de invasão, a segurança pública o exigir’; mas ele não define qual é a autoridade competente para decidir sua suspensão (embora a opinião dominante permita presumir que a cláusula seja dirigida ao Congresso e não ao presidente). Durante a guerra civil, entre 1861-1865, no dia 27 de abril de 1861, Abraham Lincoln autorizou o chefe de estado-maior do exército a suspender o writ de habeas corpus, sempre que considerasse necessário, ao longo da via de comunicação entre Washington e Filadélfia, onde haviam ocorrido desordens. Lincoln impôs uma censura sobre o correio e autorizou a prisão e detenção em cárceres militares das pessoas suspeitas de ‘disloyal and treasonable practices’, em 1862 estendeu o estado de exceção a todo o território dos Estados Unidos, enfim, a relação entre presidente e Congresso, de fato, foi apenas ratificar os atos de Lincoln. O presidente Woodrow Wilson concentrou em sua pessoa, durante a Primeira Guerra Mundial, mais poderes ainda mais amplos que aqueles que se arrogaram a Abraham Lincoln. Ao invés de ignorar o Congresso, como fez Lincoln, ele preferiu, a cada vez, fazer com que o Congresso lhe delegasse os poderes em questão. De 1917 a 1918, o Congresso aprovou uma série de Acts [do Espionage Act de junho de 1917 ao Overman Act de maio de 1918] que atribuíram a Wilson o controle total da administração do país. Outro exemplo, foi o de Franklin D. Roosevelt, desde quando no New Deal foi delegado ao presidente um poder ilimitado de regulamentação e de controle, sobre todos os aspectos da vida econômica do país. Neste sentido fica mais fácil compreender porque no ‘estado de exceção’ a suspensão do direito acaba por fundar novas leis.

Espera-se que no caso de Zelaya, o ‘estado de exceção’ não se defina nessa ‘assimetria de poder’ entre Congresso e Executivo, ou se não, então que se traduza na concepção ‘carnavalesca’ de Bakhtin ou nas ‘festas anômicas’ de Karl Meuil: uma zona em que a máxima submissão da vida ao direito se inverta em liberdade e licença; em que a anomia mais desenfreada se mostre em paródica conexão com o nomos. Que Manuel Zelaya seja recebido em Honduras sob uma dessas ‘festas anômicas’ que dramatizam uma irredutível ambiguidade com os ‘sistemas jurídicos’ e que ao mesmo tempo mostrem que o que está em jogo na dialética entre essas duas forças é a própria relação entre o direito e a vida. Que se celebrem e que se  reproduzam, como uma paródia, a anomia em que a lei se aplica ao caos e à vida, sob a única condição de tornar-se ela mesma, no estado de exceção, vida e caos vivo.

De todo modo, como evitar ser acusado por nossa fraqueza, mas, principalmente, como evitar também de correr o risco de se tornar um bode expiatório, designado responsável por todos os nossos excessos? Talvez seja esta a maior de todas as questões que pairam no pensamento de Manuel Zelaya nesses últimos dias. Não resta dúvida, talvez as únicas questões que nenhum de nós cansou de refletir foram: como uma pessoa boa se torna má? Como uma democracia se torna uma ditadura? Enfim, nesses casos, como um ato diplomático não pode se furtar do gesto clássico de Antígona? Em outros termos, a diplomacia necessita sair, em certos casos, da esfera do domus e atingir a esfera da polis? Por que a democracia liberal brasileira, paradoxalmente, não reconheceu um gesto deste como legítimo, circunscrevendo um ato diplomático ideal apenas na escala doméstica?

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