terça-feira, 3 de novembro de 2009

Micheletti e um tal Bartleby [Honduras IV]



Para compreender a violência revolucionária, certamente Slavoj Zizek chega a analisar as relações de poder, mas não para encontrar o seu ponto de aplicação em focos de resistências, num viés foucaultiano; em sua hermenêutica, o que ele se ocupa, frequentemente, é com o 'excesso de poder' e com o seu 'avesso obsceno', enfim com a Lei e sua transgressão. Utilizam-se como referência, neste sentido e para os textos que se seguem, dois de seus livros: “A Visão em Paralaxe” e “A Marioneta e o Anão”, para nos ajudar a entender a lógica jurídica que formou uma espécie de Theatrum Politico em Honduras, desde a instituição do ‘Estado de Exceção’ por Roberto Micheletti em meado de 2009. Ao passo que Giorgio Agamben, em suas análises jurídicas, filosóficas, políticas e também, por assim dizer, filológicas, contribui com sua compreensão do poder através não da resistência nem do seu excesso, mas da 'suspensão do direito', através das perspectivas delineadas em seus livros “Estado de Exceção” e “Homo Sacer”. Objetiva-se, então, redimensionar o ‘Evento hondurenho’ em seu ‘espectro democrático’ estruturado, em termos gerais, a partir do excesso de poder, da transgressão da Lei e da suspensão dos direitos.

Não resta dúvida de que vivemos um processo sem precedentes onde as grandes ‘questões públicas’ são retraduzidas em questões sobre a regulamentação das idiossincrasias mais íntimas (naturais, pessoais) e a postura diante delas. Na falta de um ‘erro’ ou de um ‘crime’ suficiente para punir um indivíduo, vasculham-se suas características próprias, individuais,  singulares e, em muitas vezes, recorre-se a seu passado, a sua classe, etc. Diz-se isto para rememorar que, como ter um bigode, usar um chapéu ou ser fazendeiro no âmbito da política hondurenha, nos últimos tempos tornou-se um conjunto de hábitos, um estereótipo que causou repúdio e estranhamento na oposição (liberal, democrática, direitista) e em seu porta-voz talvez mais querido, os mass media. Refere-se em Honduras ao próprio espetáculo do paradoxo democrático em rede planetária: quanto mais se reivindicam liberdades individuais, mais o privado se torna público: como essas espécies de programas de tevê que discutem os problemas familiares e pessoais, tornando a esfera privada cada vez mais pública; como na videopolítica de Nestor García Canclini em seu livro “Consumidores e Cidadãos”, onde o espaço público torna-se cada vez mais midiatiziado, neste caso, a ‘Crise em Honduras’ democratizava-se ao mesmo tempo em que o golpe se tornava um artefato midiático.

Distingue-se, pois, a democracia, que pressupõe, pelo menos, um mínimo de alienação (os que exercem o poder só podem ser responsáveis pelo povo se houver uma distância mínima de representação entre eles e o povo) do totalitarismo, que elimina essa distância (supõe-se que o Líder represente diretamente a vontade do povo, mas o povo é também alienado, mas em seu Líder, assim como o Líder é o que o povo ‘realmente é’, sua identidade, seus desejos e interesses). O que incomoda no totalitarismo é que há um ‘momento de verdade’: o ‘vínculo social perverso’ no qual o pervertido sabe o que o outro realmente quer. Mas a democracia é ‘encenada ou simulada’ à distância do Estado. Se ela questiona o Estado e convoca a ordem estabelecida a prestar contas, isso não ocorre para se livrar do Estado, mas para ‘melhorá-lo’ ou atenuar seus efeitos malévolos. Nesta arena ou campo de forças entre essas duas concepções, vê-se digladiar, respectivamente, Manuel Zelaya (o Líder) e Roberto Micheletti (em sua distância mínima).

A democracia torna o destino de um país dependente dos caprichos de uma minoria que pode influenciar a votação e a convicção correspondente de um agente político de que a sua missão se fundamenta na visão de um verdadeiro estado de coisas qualquer: o resultado e os ingredientes necessários da ‘lógica democrática’ descreve-se em sua pretensão a uma posição privilegiada, que rejeita as próprias regras democráticas, o que só é possível dentro do espaço democrático. No nível da identidade simbólica, todos os sujeitos são iguais, logo, eles podem ser substituídos um pelo outro. Esse igualitarismo democrático se apresenta com uma espécie de ‘justiça igualitária’, na medida em que é sustentada pela inveja, baseia-se na inversão da renúncia-padrão (feita para beneficiar os outros): “estou disposto a renunciar para que os outros também não tenham ou não possam ter!” Essa lógica igualitária baseada na renúncia e na inveja foi propalada por Micheletti ao longo desse ‘estado de exceção’ hondurenho. Afinal, quem não se lembra de sua postura “renuncio se Zelaya não assumir o poder”? Em linhas gerais, essa ‘idiossincrasia michelettiana’ não deixa de ser uma ‘atitude termidoriana’, traduzida pela lei dialética hegeliana, que diz: a tarefa histórica fundamental que exprime naturalmente a orientação de um bloco político só pode ser cumprida pelo bloco oposto. Em todo caso, o pedido de “renúncia de Zelaya com a suposta automática renúncia de Micheletti” não se traduz melhor do que como o ‘bluff do outro’? Ou seja, como no mote de Maio de 1968: “Sejamos realistas, peçamos o impossível!” Com um pedido impossível de se satisfazer, sabe-se perfeitamente que a reivindicação não será satisfeita, assim tem-se a certeza de que nada mudará, mantendo-se o atual estatuto privilegiado.

Enquanto Manuel Zelaya e seus seguidores optaram pela renúncia à violência ou por uma ‘agressão passiva’, numa recusa a participar do golpe, como no famigerado gesto de Bartleby (‘preferiria não’), no entanto Roberto Micheletti seguiu na sua ‘passividade agressiva’, em que ficou o tempo todo ativo para garantir que nada acontecesse e que nada mudasse de verdade. ‘Política de Bartleby’, portanto, que se exerceu uma mudança em algo, mas para nada, ou melhor, deslocou-se de uma lacuna entre dois ‘algos’ (entre Zelaya e Micheletti) para uma lacuna que separa algo (Zelaya) de nada, do vazio de seu próprio lugar (presidência de Honduras). Trata-se da fonte e o pano de fundo de uma nova ordem, ou de seu fundamento permanente; desde que Zelaya retornou a Honduras (‘abandonado’ na Embaixada Brasileira), a ‘sua’ estratégia não cessou de minar as resistências, de dizer não às resistências a seus correligionários, porque elas só ajudariam o sistema de governo michelettiano a se reproduzir; essa é apenas uma alusão ao “Bartleby” de Melville, ou seja, Zelaya esteve mais para o Bartleby, em sua ‘agressão passiva’, podendo dizer seu ‘não’ em Honduras, na imagem que tanto incomodou a mídia: deitado num sofá, com seu chapelão sobre o rosto, na Embaixada Brasileira, sem poder fazer nada... é porque Bartleby não mataria mesmo nem uma mosca. Parece-nos que a estratégia de Zelaya tendeu, em todas as etapas do golpe (desde a sua mobilidade em busca de apoio aos países até a sua ‘quase-inércia’ na Embaixada do Brasil em Honduras), a uma ‘agressão passiva’ que mais se aproximou, mesmo em seu limite, a uma idealizada ‘política de Bartleby’, ao negar o estado de coisas instaurado em Honduras, por seu turno, Micheletti agiu e não queria mudar nada, em sua política da ‘agressividade passiva’.

Destaca-se o paradoxo da Lei que se baseia no excesso constitutivo da representação para além do representado. No plano da Lei, o Poder estatal apenas representa os interesses de seus sujeitos (serve a eles, responde a eles e está sujeito ao seu controle), mas é complementada pela mensagem pública e obscena do exercício incondicional do Poder: ‘as leis na verdade não me restringem, posso fazer com vocês o que eu quiser, posso tratá-los como culpados se assim decidir, posso destruí-los se assim quiser... ’ Se esse excesso obsceno (‘espere só o que vai lhe acontecer! ’) é o constituinte necessário da noção de soberania. Mas acontece que a Lei só pode manter sua autoridade se os ‘súditos’ ouvirem nela o eco da auto-afirmação obscena incondicional. Decerto, Roberto Micheletti se esforçou para motivar ou convencer os cidadãos hondurenhos através dessa ‘ameaça soberana’, desse núcleo obscuro ou ‘excesso obsceno’ que complementa e dá significado às leis. Percebe-se que Micheletti fracassou nessa tentativa, porque a população (a maioria fadada ao governo de uma minoria, comum ao regime democrático) ao invés de dar o eco incondicional para a auto-afirmação do ‘golpe de Micheletti’, disse um ‘preferiria não’, mesmo translúcido, opaco e às vezes inaudível. Micheletti não conseguiu manter o seu afetuoso ‘estado de direito’, porque ele só pode ser mantido por um poder soberano que se reserva o direito de proclamar um ‘estado de exceção’, ou seja, de suspender o estado de direito em nome da própria lei, privando a Lei do excesso que a sustenta, o que não tardou perder/perverter a própria Lei (o próprio estado de direito).

Com efeito, o golpe em Honduras acabou destruindo o próprio ‘estado de direito’ que queria sustentar, manifestou-se, no em seu lugar, um poder que se apresenta como se estivesse o tempo todo sob ameaça, que vive sob um perigo mortal e apenas se defende – é o tipo de poder mais perigoso, ressentido e hipócrita. Com a finalidade de restituir o ‘estado de direito’ democrático, o que era para ser tornar um ‘estado de exceção’ pareceu mais um ‘estado de emergência’(sob a cristã tradição paulina): ‘como se’ fosse um estado de exceção; ‘como se’ fosse um ‘estado de sítio’ e, principalmente, em guerra contra seus cidadãos e numa posição que parecia obscena e ilegal. Essa sensação de ‘estado de emergência’ pode ter sido o elemento que confundiu tanto especialistas quanto jornalistas na hora de designar que tipo de estado realmente estava sendo implantado em Honduras ao mesmo tempo em que sua posição ‘obscena e ilegal’ tornou-se uma opinião hegemônica, na qual se tratava de um golpe antidemocrático, difundida entre organizações supranacionais (como a ONU), Estados-nacionais e instituições diversas em todo o mundo.

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