terça-feira, 3 de novembro de 2009

Julgamento-paulino [Honduras III]



A situação mais difícil em Honduras é como ignorar um ‘estado normal’ que Roberto Micheletti procura impor, sem deixar de perceber que ele coincide e se traveste de um típico ‘estado de emergência’. O presidente de fato ou interino não parou de declarar: ‘tudo está sob controle’, ‘sigam as instruções’ e ‘prossigam a vida normal’, entretanto o que se vivia era um ‘estado de exceção’. De um lado, o estado de exceção, que não é uma negação do reino da Lei nem a sua destruição, mas o próprio gesto que a funda. De outro lado, o ‘estado de emergência’ judaico-paulino, a suspensão da imersão ‘normal’ na vida cotidiana No funcionamento ‘normal’ da vida a imposição da Lei engendra um ‘dano colateral’: a sua própria transgressão, o seu próprio excesso.

Ninguém em Honduras deixou de perceber que era preciso se habituar diariamente com a ameaça de uma catástrofe pronta para explodir em suas cabeças, como se estivesse introduzindo um ‘estado de emergência permanente’. Aparentemente nota-se que um ‘estado de exceção’ se realizava, mas que a população hondurenha promovia uma violência contra um ‘estado de emergência’, o que de fato deu certo, ou seja, todos se sentiram convidados a ‘participar de prontidão’ de um ‘golpe de estado’ (de emergência) no qual precisamente o poder afirma o domínio que exerce sobre os cidadãos: os hondurenhos escaparam de tal poder que se aplicava sobre eles, afirmaram um ‘preferiria não’.

Que Lei ‘louca’ [incondicional kafkiana] que se sustenta ao antecipar que todos são culpados sem mesmo saber de quê? Esta Lei é a meta-Lei, a Lei do ‘estado de emergência’, em que a ordem do direito é suspensa – a Lei ‘pura’, a forma da ordem/interdição ‘como tal’, o enunciado de uma injunção privada de qualquer conteúdo, conforme Slavoj Zizek em seu livro ‘A Marioneta e o Anão’. Nesta esteira, os hondurenhos disseram este ‘preferiria não’ através do pressuposto implícito da Lei: a própria lei engendra o desejo de a violar; a lei proibitiva como elemento que engendra o desejo transgressivo; a instauração de interditos nos levam a gozar a sua violação, mesmo que isso nos leve a uma conclusão perversa desmoralizante, mas a transgressão não se elevou ao estatuto de norma, como o estado que a circundava, ela se manteve exceção.

Toda essa dialética da transgressão e da lei conduz a uma interpretação sobre a relação entre a morte de Cristo e o pecado. Se observarmos a morte de Cristo como um sacrifício, ela é uma consequência do fato de nós, humanos, sermos culpados devido aos nossos pecados. Mas Deus nos enviou Cristo, aquele que não pecou, para que morresse, em sacrifício, em nosso lugar. Através do sangue derramado por Cristo, Deus nos perdoa e nos liberta da danação. Interpretação legalista esta, afinal há um pecado que é preciso pagar e, ao pagar o nosso pecado no nosso lugar, Cristo redimiu-nos (fazendo de nós seus devedores para sempre). Essa leitura sacrificial apresenta o gesto de Cristo surgindo no interior do qual, não só Cristo, mas qualquer um gostaria de triunfar, no interior do horizonte em que morremos por ele, nos identificamos imediatamente com ele: no interior da Lei [a culpa, a expiação, o pecado e o preço a pagar por ele], a morte de Cristo só pode surgir como a afirmação absoluta da Lei – como a elevação da Lei ao estatuto de instância todo-poderosa que nos esmaga, a nós, seus sujeitos, com uma culpabilidade e uma dívida que nunca poderemos pagar. Apela-se para o ‘amor’ com sua máscara de ‘Lei infinita’, que se ultrapassa a si mesma. Uma Lei que já não impõe proibições ou injunções específicas e determinadas (faça isso ou faça aquilo), mas repete simplesmente uma interjeição ‘vazia’: ‘não...’ Uma Lei em que tudo é simultaneamente proibido e autorizado, embora seja obrigatório.

Não resta dúvida que essa interpretação não cabe em nada a Manuel Zelaya, afinal ele não só não está morto como ele é o único que não poderia morrer. Essa interpretação legalista da morte de Cristo é inteiramente pertinente ao ‘povo hondurenho’ que morreu, sob o qual Zelaya, paradoxalmente, em seu íntimo, passa a manter seu débito, a sua dívida infinita, enquanto os mortos, torturados e vítimas, em geral, desse ‘golpe medonho’ triunfam, sempre, como aqueles que morreram, inocentes, por seu Líder ou, por assim dizer, pelo seu ‘ídolo’, em sua ‘idolatria’. Trata-se de três regimes legalistas: [1] Roberto Micheletti: a ‘lei incondicional kafkiana’ que se revela como uma injunção abstrata que fez de ‘todos’ (hondurenhos, principalmente os ‘zelaystas’) culpados precisamente por não saberem do que eram culpados, em geral, visível num epicentro da culpa: eram culpados por serem adeptos do governo zelaysta? Eram culpados por estarem se rebelando contra o governo de Micheletti? Eram culpados por que, de fato, cometeram crimes? Que crimes cometeram para ser culpados?; [2] o povo hondurenho: sob a interpretação legalista da morte de Cristo, o seja, quem triunfa morre, mas quem sobrevive é ‘acochado’ por uma ‘dívida infinita’, neste caso invertem-se os papéis, quem sobrevive é o Líder e quem morre (paga a pena, sofre o martírio, o ‘bode expiatório’) é o povo; [3] Manuel Zelaya: trata-se, em princípio, do ‘Julgamento Negativo de São Paulo’, mas, com efeito, de uma ‘Lei Judia’.

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