terça-feira, 3 de novembro de 2009

O Retorno do Wargus [Honduras II]



O Julgamento Negativo de São Paulo sobre a Lei pode ser descrito da seguinte forma: nenhuma carne será justificada diante de Paulo pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado (a punição). Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Por isso Cristo nos resgatou da maldição da lei. Portanto, quando diz Paulo que ‘a letra mata’ e o espírito vivifica, esta letra é precisamente a Lei. Entre os luteranos, Rudolf Bultman ressaltou que o esforço do homem para obter a sua salvação obedecendo à Lei só pode conduzi-lo ao pecado; na realidade, esse próprio esforço já é, no fundo, um pecado. A Lei traz à luz o fato de o homem ser um pecador, ou porque o seu desejo culpado o leva a transgredir a Lei, ou porque esse desejo se disfarça em zelo para manter a Lei, conforme Slavoj Zizek em "A Marioneta e o Anão". Considerar que Manuel Zelaya será ‘julgado’ ou ‘submetido’ pelo poder legislativo ou Congresso Hondurenho pressupõe que ele, lógico, duas uma, ou será condenado ou absolvido. Trata-se, nesta análise, apenas sobre a hipótese de ele ser absolvido ou de se estruturar uma defesa contra, talvez, ‘um crime que nem bem ele saiba se cometeu ou se ia cometer’ (às duras penas da Lei incondicional kafkiana de Micheletti). Neste caso, parte-se do princípio do ‘Julgamento Negativo de Paulo’, que destaca o ‘crime’ (o pecado) na própria Lei, imanente a ela, por isso a Lei mata ou pune.

Em seguidaí, com efeito, destaca-se alguns aspectos da ‘Lei Judia’: se, através da Lei, os judeus viveram na diáspora, logo mantiveram certa distância relativa à sociedade no seio da qual vivem, então a Lei Judia é fundada num gesto de ‘desprendimento’. A Lei Judia não é uma lei social altamente reguladora (das trocas sociais, dos fluxos comerciais, etc.), mas uma lei que introduz outra dimensão: a da ‘justiça divina’. A ‘justiça divina’ não é o restabelecimento de um equilíbrio, como processo inexorável do Destino, que restabelece o equilíbrio perturbado pela hubris humana. A ‘justiça judia’ é a visão do estágio final, em que serão anuladas todas as injustiças infligidas aos indivíduos. Quando os judeus ‘se desligam’ em diáspora e mantêm certa distância relativamente à sociedade em que vivem, não fazem isso em nome de uma identidade substancialmente diferente... os ‘judeus’ são, de fato, ‘desenraizados’, a sua Lei é abstrata, sem dúvida, é ela que os extrapola da substância social. Que atributos pertencem a Manuel Zelaya para ser julgado sob um paradigma legal judaico? Primeiramente, não resta dúvida, ele não é um judeu diasporizado distante da sua sociedade, mas também Zelaya não abandonou o poder e saiu rumo a Costa Rica e peregrinou entre palácios de governos na América Latina em busca de apoio, por livre e espontânea vontade. Manuel Zelaya não foi refugiado nem exilado, talvez, o termo correto seja ‘abandono’, na acepção de Giorgio Agamben em “Homo Sacer”, ‘abandono’ ou ‘bando soberano’. Entende-se que qualquer lei que se submeta à manifestação do ‘abandono’ deve se modelar através do ‘gesto de desprendimento’ da lei Judia.

O ‘desligar’ de Zelaya, como o dos judeus, não ocorreu por uma ‘identidade diferenciada’, mas por forças externas que provieram do ato histérico e precipitado da Corte Jurídica e/ou de Micheletti. Em seguida, não se trata do Congresso Hondurenho julgar mais uma vez Manuel Zelaya, até que realmente se prove alguma coisa contra ele [até porque qual o crime que se comete em Honduras que se justifica no abandono, sob a insígnia do wargus, do homem-lobo?]. O que o Congresso Hondurenho só pode fazer é estabelecer o que designa ‘estágio final’ na justiça judia ou na ‘justiça divina’, qual seja: a anulação da injustiça que se infligiu aos indivíduos, nesse caso, o ‘abandono’(ou a expulsão da comunidade, aberto a todos, livre, remetido à própria separação, entregue à mercê de quem o abandonou, dispensado e, ao mesmo tempo, capturado). A questão é a de não se admitir a hipótese de que a ‘cabeça’ de Zelaya esteja à disposição de um Congresso, muitas vezes articulado com o presidente interino Micheletti, principalmente nesses ‘estados de exceção’ mutiladores; afinal trata-se de conceder o writ Habeas Corpus, modelado, nessa interpretação, pela ‘justiça divina’ da Lei Judia: o Habeas Corpus tem a função de garantir a liberdade física do súdito, isto é, que nenhum homem livre seja detido, aprisionado, despojado de seus bens, nem, principalmente, 'posto fora da lei' ou molestado de modo algum: "nós não poremos nem faremos por as mãos nele, a não ser após um juízo legal de seus pares e segundo a lei do país". Em analogia, um antigo writ que precede o Habeas Corpus era destinado a assegurar a presença do imputado em um processo, o que leva a rubrica de homine replegiando (ou repligiando). O Habeas Corpus é um procedimento jurisdicional voltado à proteção da liberdade individual. O que nos assusta em Honduras é exatamente como se ignorou esse procedimento até agora [Zelaya somente voltou a Honduras com o apoio da e na Embaixada Brasileira], já que o Habeas Corpus recebeu forma de lei e se tornou inseparável da história da democracia ocidental? Trata-se, sobretudo, de muita acuidade em se tratando das relações obscuras entre o Congresso e o Executivo num ‘estado de exceção’. Essa é a maior preocupação nesta hora que, em 30 de outubro de 2009, estabeleceu-se o retorno ao poder do presidente deposto, Manuel Zelaya, mas a restituição ficou nas mãos do Congresso e da Suprema Corte da Justiça.

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