segunda-feira, 20 de julho de 2009

A Swaraj dos Hindus [1947]


No final do século XIX, a Índia tornou-se o maior território e a mais durável e lucrativa dentre todas as possessões coloniais britânicas. Desde a época em que a primeira expedição lá desembarcara, em 1608, até a partida do vice-rei britânico, em 1947, a Índia exerceu enorme influência sobre a vida da metrópole desde os negócios e a guerra até no âmbito da cultura e imaginação, segundo Edward Said em “Cultura e Imperialismo”. Outras mudanças de atitudes já vinham ocorrendo entre a casta dominante de funcionários coloniais britânicos, civis e militares, em decorrência da Revolta de 1857, dos ‘chapatis voadores’.

Em 1885, a Índia estava adiantada rumo a uma dinâmica de oposição ao domínio britânico, quando foi fundado o Congresso Nacional Indiano. De 1905 a 1910 ocorreu a primeira fase da militância nacionalista indiana em grande parte em termos ‘nativistas’, especialmente entre jovens ‘terroristas’ de Bengala. Mohandas Karamchand Gandhi [1869-1949] acabou por mobilizar aldeias e bazares da Índia, às dezenas de milhões, com o mesmo apelo ao nacionalismo espiritual hindu. Neste mesmo período, ainda no início do nacionalismo indiano, Bal Ganghadar Tilak supôs que a melhor forma de conquistar o apoio das massas, defendendo a santidade das vacas, o casamento de meninas de dez anos, a afirmação da superioridade espiritual da antiga civilização hindu sobre a civilização ocidental moderna. De outro modo, Gandhi teve o cuidado, porém, de não romper por completo com os modernizadores e de entrar num antagonismo com a Índia maometana.

Foi Gandhi quem praticamente inventou a imagem do político como ‘santo’, a revolução pelo ato coletivo de ‘não-cooperação não violenta’, inclusive a modernização social – como a rejeição ao sistema de castas, através do próprio potencial reformador da mutação do hinduísmo em evolução –, de acordo com Eric Hobsbawm em “Era dos Extremos”. A Grã-Bretanha não conseguiu uma estratégia fácil para manter o controle da Índia, onde o slogan do ‘autogoverno’ [swaraj], adotado pelo Partido do Congresso pela primeira vez em 1906, agora se aproximava cada vez mais da sua realização. Os anos de 1918 a 1922 transformaram a política nacionalista de massa no subcontinente indiano: [1] porque as massas muçulmanas se voltaram contra os britânicos; [2] pela sangrenta histeria de um general britânico, em 1919 no ‘Massacre de Amristar’, que massacrou uma multidão desarmada numa área sem saída; [3] pela combinação de uma onda de greves operárias com desobediência civil em massa convocada por Gandhi e um congresso radicalizado. Um estado de espírito quase milenar tomou o movimento de libertação: Gandhi anunciou que o swaraj seria conquistado até o fim de 1921.

O governo da Índia se viu numa situação em que as cidades estavam paralisadas pela ‘não-cooperação’ e o campo achava-se em polvorosa, em grandes áreas do norte da Índia, Bengala, Orissa e Assam, além de uma população maometana indisposta em todo país. A Índia tornou-se ingovernável e só a hesitação dos líderes do Congresso, incluindo Gandhi, em mergulhar o país numa insurreição incontrolável das massas e a convicção dos nacionalistas, teria salvado o domínio britânico. Depois que Gandhi suspendeu a campanha de desobediência civil no início de 1922, alegando que ela levara ao massacre de policiais numa aldeia, pode-se afirmar que o domínio da Grã-Bretanha na Índia já dependia da moderação de Gandhi, muito mais do que o exército e da polícia. O futuro da Grã-Bretanha na Índia passou a depender de um acordo com as elites indianas, incluindo os nacionalistas. O fim do domínio unilateral britânico na Índia a partir daí passou a ser uma questão de tempo. O Partido do Congresso ainda lançou o movimento ‘Deixe a Índia’ em 1942, enquanto o radical bengali Subhas Bose recrutava um Exército de Libertação Indiana. Um homem como Jawaharlal Nehru não hesitou em se lançar na rebelião do ‘Deixe a Índia’ no ano da crise do império britânico. A Grã-Bretanha aprendera com a longa experiência na Índia, que a partir do surgimento de movimentos nacionalistas sérios, a única maneira de manter as vantagens do império era abrir mão do poder formal.

Os britânicos retiraram-se do subcontinente indiano em 1947, antes que se tornasse patente sua incapacidade para controlá-lo, e sem a menor resistência. Gandhi teve um êxito muito acima do esperado e, do temido, no entanto, como ele próprio reconheceu no fim da vida: fracassei em meu esforço fundamental, disse ele, antes de ser assassinado por um militante de tradição tilakiana de exclusivismo hindu. No fim, a Índia ‘livre’ seria governada por aqueles que não se voltaram para uma ressurreição da Índia dos tempos antigos. Partha Chatterjee afirmou, em “Nacionalist Though and the Colonial World: a Derivative Discourse?”, que a libertação nacional e a soberania nacional contribuem para a organização e o funcionamento de uma hierarquia capitalista global: o Estado nacional segue a fim de encontrar um lugar para a nação sob a ordem global do capital, enquanto se empenha em manter em suspenso as contradições entre o capital e o povo. Segundo Chatterjee, grande parte do pensamento nacionalista na Índia dependeu da realidade colonial, seja para opor-se a ele, seja para afirmar uma consciência patriótica. O marco radical do nacionalismo foi, para ele, alcançado na total oposição de Mahatma Gandhi à civilização ocidental, enquanto a façanha de Jawaharlal Nehru foi tomar a nação indiana e depositá-la inteiramente nos marcos do Estado, uma vez libertados da modernidade por Gandhi. O novo Estado nacional foi estabelecido e governado, não por profetas e poetas rebeldes, mas, no caso da Índia, por Nehru, um estadista ‘pragmático e compenetrado’. Para Chatterjee, camponeses e pobres são muito bem comandados por paixões e não pela razão, isto é, podem ser mobilizados por poetas como Tagore e por presenças carismáticas como a de Gandhi; mas depois da independência toda essa gente foi absorvida por um Estado.

A Índia se sujeitou, por fim, a um processo racional baseado em normas externas, pela lógica do capitalismo mundial comandada pelos principais países industriais. Houve, sobretudo, uma Libertação Nacional conseguida à custa da sangrenta divisão da Índia num Paquistão muçulmano e numa Índia não religiosa, mas esmagadoramente hindu; que não fazia parte do plano dos governos imperiais nem nacionalistas indianos, muito menos dos movimentos muçulmanos.

À custa de centenas de milhares de pessoas massacradas por adversários religiosos e outros milhões de habitantes expulsos de suas terras ancestrais para o que era agora um país estrangeiro. A guerra que dividiu a Índia em duas foi o último suspiro da exaustão do domínio britânico. O Paquistão e a Índia expandiram o raio de alcance de seus mísseis e, em algum ponto, é provável que também tenham capacidade de poder atingir alvos no Ocidente. Assusta-nos se a tradição antimodernista Tilak, representado pelo militante partido BJP, tem sido o grande foco de oposição popular? Em “The Colors of Violence: Cultural Identities, Religions and Conflicts” de Sudhir Kakar, a Índia tornou-se o lugar onde uma nova identidade hindu está sendo construída em resposta às tensões e alienações geradas pela modernização; ou a breve tentativa de Mahatma Gandhi, de um hinduísmo ao mesmo tempo popular e progressista, desapareceu de vista, ou ‘Deixe a Índia’?!

domingo, 19 de julho de 2009

Motim Chapati [Meerut, 1857]


Os brâmanes tratam com igual desprezo não apenas as comprova-ções da ciência moderna, mas também ‘o próprio testemunho de seus olhos’. O hindu se esquiva à evidência de seus olhos, assiste-se a uma forma de coerção do sujeito nativo na qual não pode existir nenhuma verdade. Não é uma questão de racionalidade ou moralidade simplesmente. Trata-se da questão da capacidade de cultura humana. A Índia é uma figura de profunda incerteza intelectual e de ambivalência governamental: se a Índia é o símbolo originário da autoridade colonial, ela é o signo de uma dispersão articulada a um saber autoritário, afirmou Homi Bhabha em “Local da Cultura”.

Da incompatibilidade do império e da nação emerge uma ambivalência anômala, que não é necessariamente uma oposição dialética: não há senhor e escravos, há apenas o senhor escravizado ou o escravo sem senhor. Não se esquiva à anomalia do governo britânico da Índia. Essa anomalia, desde o século XIX, tem o significado do governo de um povo que tem por si só uma realidade, mas isto de um governo ser governado por outro não existe e não pode existir. Prática do poder representada de modo anômalo, como o governo virtualmente despótico de uma colônia por um povo livre – mais uma vez, nem uma coisa nem outra. Entre as décadas de 1850 e 1860, no norte e no centro da Índia, houve o ‘Levante Indiano’ ou o ‘Motim’, quando os sujeitos marginalizados ou insurgentes criaram coletivamente um dispositivo constituído por uma estratégia cultural contígua a um confronto político. Em “Elementary Aspects of Peasant Insurgency” escrito por Ranajit Guha, a transmissão ‘simbólica’ desse dispositivo rebelde se deu pela repetição do rumor e pelo pânico incontrolado, como estratégia política em meio às principais causas agrárias do ‘Levante da Índia’. R. Guha contou a história dos chapatis [pães ázimos] que foram disseminados rapidamente pelos centros rurais do ‘Levante’, logo após a introdução do rifle Enfield e das ‘balas engraxadas’ nas Infantarias Nativas.

A circulação dos chapatis pode ser tratada como rumor e seu desempenho resulta em geral na disseminação contagiosa: impulso quase incontrolável de passá-lo adiante para outra pessoa. A ação dos chapatis com sua circulação e seu contágio liga-se ao pânico, ou seja, uma conspiração que constitui o domínio da revolta e da resistência. Acontece que, de aldeia em aldeia, um mensageiro levava o símbolo em forma daqueles bolos achatados feitos de água e farinha, que consistiam no ‘pão do povo’, os chamados chapatis. Esse mensageiro aparecia e dava o bolo ao chefe de uma aldeia e lhe pedia que o despachasse para a próxima. Dessa maneira o chapati viajava de lugar para lugar; sem que ninguém se recusasse, em obediência a uma necessidade mais sentida do que compreendida... A maioria das pessoas encarava isso como sinal de alerta, como se algo fosse acontecer ao povo. Outros achavam que isto era apenas uma superstição correndo o país. Outros ainda, que a circulação [dos chapatis] era uma ficção, mas afirmavam haver pó de osso neles. Havia aqueles que indicavam que os chapatis circulavam para alarmar as pessoas de que o seu alimento seria retirado. O rumor produz uma reação infecciosa, com o propósito político do pânico e da circulação do chapati de manter viva a agitação popular. O medo obsessivo e a extrema desconfiança do governo eram sintomáticos nos soldados mais indisciplinados que se agarravam com fervor às tradições diante dos novos regulamentos para o controle e a modernização do exército com o rifle Enfield.

O Governo buscou libertar o camponês do taluqdar [proprietário de terras] e anexar o reino de Oudh, entre outros principados menores, criando uma sensação de mobilidade social que afetou um exército composto por camponeses mercenários de alta casta. O 20º batalhão de Infantaria de Bengala, que iniciou a rebelião em Meerut em maio de 1857, consistia na maior parte de pequenos proprietários de terras rajput e brâmanes do sul de Oudh. O medo não se limitava, portanto, aos camponeses, pois a indeterminação dos acontecimentos revelava o pânico entre os burocratas e dentro do exército. O tenente Harriet Martineau, inspetor no Depósito de Rifles de Umballa, era responsável pelo treinamento de soldados nativos da infantaria no uso dos rifles Enfield. Apenas cinco dias antes da eclosão do Levante em Meert, o tenente escreveu ao general Belcher acerca de seu exército, aterrorizado por uma ocorrência do chapati em suas próprias fileiras. Mas suas apreensões foram ignoradas e foi negado o seu pedido de investigação dessa agitação inusitada em suas fileiras. Criou-se a possibilidade de uma guerra de nervos, cujo mito de conspiração maometana não só autorizava o chapati, numa forma perversa de batalha, como lhe atribuía uma vantagem tática: vencer por estratagema, não pelas armas. Trata-se, enfim, de uma sujeição das massas rurais a uma fonte comum de exploração e opressão que as tornam rebeldes antes mesmo que apreendem a se juntar em associações campesinas.

A Revolta de 1857 chegou a ser o episódio mais importante e mais violento conhecido na relação anglo-indiana no século XIX: a Grande Revolta de 1857, que eclodiu em Meerut em 10 de maio e levou à tomada de Delhi. O que desencadeou o Motim foi que os soldados hindus e muçulmanos do exército indiano desconfiaram que os projéteis fossem engraxados com gordura de vaca [imprópria para os hinduístas] e gordura de porco [impuras para os muçulmanos], conforme Edward Said em “Cultura e Imperialismo”. Mas as causas do Motim eram próprias do imperialismo inglês, de um exército em larga medida composto de nativos, comandado por sahibs [britânicos ‘vestidos’ de nativos], dos descomandos da Companhia das Índias Ocidentais. O Motim demarcou a história indiana e a britânica. Para os britânicos, que esmagaram o motim com rigor e perversidade, todas as suas ações foram vistas como retaliação; os revoltos assassinavam europeus, diziam eles; essas ações provavam que os indianos mereciam ser subjugados pela civilização superior da Inglaterra européia; depois de 1857, a Companhia das Índias Ocidentais foi substituída pelo caráter formal do Governo da Índia.

Para os indianos, o Motim foi uma sublevação nacionalista contra o domínio britânico, que se consolidava apesar dos abusos, da exploração e das reclamações indianas ignoradas. Edward Thompson publicou, em 1925, “The Other Side of the Medal”, pronunciamento contra o domínio inglês que apontou o Motim como grande acontecimento em que indianos e ingleses atingiram a plenitude de uma oposição mútua. Entre o ‘ardor nacionalista’ e o ‘vigor auto-justificativo’, ser indiano era sentir uma solidariedade natural com as vítimas da represália britânica, ser inglês significava sentir choque e horror diante das demonstrações de crueldade dos ‘nativos, que encarnavam o papel de selvagens que havia sido atribuído a eles. Em 1857, Harriet Martineau havia afirmado: o espírito despreparado, seja hindu ou muçulmano, desenvolvido em condições asiáticas, não seria capaz de qualquer sintonia, intelectual ou moral, com o espírito europeu cristianizado, salientou Francis Hutchins em “The Illusion of the Permanence: British Imperialism in India”. Certamente havia uma grande insatisfação com o domínio cristão num país de tantas culturas e raças, que consideravam sua subserviência aos ingleses uma posição degradante. Os islâmicos concebem a ordem e um deus específico, enquanto os hindus acreditam que tudo é uma só mistura, tudo está interligado, que Deus é um só, não é, era, não era.

Brahmana e o Sultão de Delhi [exílio]


Reconhece-se que existiram uma ou mais civilizações no subcontinente indiano desde pelo menos 1500 a.C. De modo geral, elas são chamadas de indiana, de índica ou de hindu. O hinduísmo foi fundamental para a cultura do subcontinente desde o segundo milênio antes da era Cristã. Mais do que uma religião ou sistema social, ele é o núcleo da civilização indiana e continuou a desempenhar esse papel através dos tempos, no entanto, a Índia possui uma significativa comunidade muçulmana, bem como várias minorias culturais mais reduzidas, conforme Samuel Huntington em seu livro “O Choque de Civilizações”. O tempo ‘hindu’ separa o nome da civilização do nome do seu Estado-núcleo, pois nesse caso a cultura da civilização se estende para além do Estado. Nessas civilizações os mitos são propagados por uma classe bem definida de intelectuais, neste caso: os brâmanes hindus.

Bhrigu, um santo, era um dos filhos do deus Varuna, tendo adquirido grande conhecimento brâmane, seu pai mandou-lhe viajar, mas deste mundo a outro, essa narrativa está contida num tratado sobre os sacrifícios, o Jaiminiyá-Brahmana. São apenas três cenas: primeiramente, Bhrigu vê árvores que, no além, assumiram a forma humana e agora cortam homens em pedaços e os comem; segundo, ele vê um gado abatido e comido que assumiu, no além, forma humana, e faz agora com homem o que este fez outrora com o gado; terceiro, vê o arroz e a cevada assumirem a forma humana e retribuírem assim o que sofreram. Trata-se de uma concepção popular que se oculta sob o disfarce sacerdotal: o que se faz neste mundo recebe-se no outro – exatamente do mesmo modo como, neste mundo, os homens comem os animais, no outro mundo, os animais comerão os homens. Afirmação extraída de outro Brahmana, com notável confirmação no Livro da lei de Manu. Àqueles, porém, que se abstém de comê-la, promete-se uma recompensa especial. Carne em sânscrito é mamsa: mam significa ‘a mim’ e sa significa ‘ele’. Mamsa significa, então ‘a mim ele’. ‘A mim’ que lhe comi a carne neste mundo, ‘ele’ comerá no além, ou seja, aquilo que os sábios declararam ser a ‘carnalidade da carne’, nisso consiste a natureza carnal, o sentido da palavra carne: eu como e ele a mim, segundo Elias Canetti em seu livro “Massa e Poder”. O animal que se comeu guarda quem foi que o comeu. Carne é, então, a consequência daquilo que se fez. Enfim, ‘qualquer que seja a comida que o homem experimenta nesse mundo, ele há de experimentá-la no outro’, essa afirmação encontra-se no Shatapatha-Brahmana, um dos mais antigos tratados hindus sobre os sacrifícios. Desse mesmo tratado provém uma história: a narrativa do vidente Bhrigu ao além. Quando o saber de Bhrigu subiu-lhe à cabeça, alçando-se acima de seu próprio pai divino, tornou-se arrogante. Para mostrar ao filho quão pouco ele sabia, Varuna recomendou-lhe uma viagem pelas diversas regiões do céu: leste, oeste, norte e sul. Bhrigu deveria se submeter à condição de ver tudo com atenção e, ao retornar, contar ao pai tudo o que viu. No leste, Bhrigu viu homens decepando um a um os membros de outros homens e repartindo os pedaços entre si. Explicaram-lhe que esses homens faziam isto porque haviam feito exatamente o mesmo no outro mundo e que agora nada mais faziam como tratá-los da mesma maneira. Partiu em direção ao sul e Bhrigu assistiu praticamente o mesmo episódio, assim como no norte e no oeste. Após o retorno de Bhrigu, Varuna soube que o filho tinha visto essas coisas e explicou-lhe que os homens no leste decepando membros dos outros eram árvores, no sul eram gados, no oeste eram ervas e no norte eram águas. Para todos os esses casos Varuna conhecia o antídoto. Entre os hindus esses são alguns aspectos mitológicos que os envolvem, mas entre os muçulmanos, talvez o sultão Muhammad Tughlak trouxera alguns ensinamentos.

Muhammad Tughlak era um representante da mais alta cultura de sua época, além de ater-se aos preceitos de sua religião e não bebia vinho – levava a sério os rituais do islamismo e esperava o mesmo dos outros. Na guerra, distinguiu-se por sua coragem e iniciativa. O sultão ficava sentado em seu trono, com as pernas cruzadas uma sobre a outra, sob um baldaquim revestido de branco; através de si, tinha uma grande almofada, e duas outras dos lados, servindo de apoio para os braços. Diante dele, em pé, ficava o vizir, atrás deste, os secretários, assim por diante, segundo a hierarquia da corte. Um dos mais ambiciosos planos de conquista do sultão Tughlak era atacar Khurasan, o Iraque e a China. Essa conquista demandaria muitos exércitos e mais, mais dinheiro. O sultão dispunha de receitas suntuosas, pois de toda parte afluíam tributos de reis hindus subjugados. Então, ele mandou cunhar moedas em cobre que foram, arbitrariamente, equiparadas ao valor das de pratas e ouro. As pessoas passaram a comprar e vender em cobre, até que cada casa hindu transformou-se numa casa de moeda, milhões de moedas de cobres foram cunhadas. Logo, o valor da moeda pôs-se a despencar, por fim o cobre não valia mais nada. Pela travessia do Himalaia, a conquista da China foi promovida com um exército de cem mil homens, cavaleiros montados, em 1337, que partiu e pereceu no alto das montanhas. Somente dez homens conseguiram se salvar, trazendo de volta a Delhi a notícia da morte dos outros. Por ordem do sultão, os dez foram executados. Mas uma das mais graves acusações contra o sultão era a de ter obrigado os habitantes de Delhi a abandonar a cidade. Eles escreviam-lhe cartas, mas insultando-o. O sultão decidiu reduzir a cidade a ruínas, após ter comprado dos habitantes as suas casas e edifícios e pago por elas o que valiam, ordenou-lhes que mudassem para Daulatabad, a cidade que queria transformar em sua capital. A população recusou-se, mas a maioria acabou acatando sua ordem. Delhi ficou abandonada.

Enfim, entre os muçulmanos e os hindus brâmanes resta compreender essa natureza comum: exilar o filho e a população de uma cidade. A mobilidade e a circulação de Bhrigu e dos cidadãos de Delhi ensinam a dispersão.

sábado, 18 de julho de 2009

Os Zulus e a Resistência Sul-africana


Sabe-se da relação inextricá-vel que os homens estabele-cem com a morte, mas a relação com os próprios mortos ainda é muito especial. Em muitos casos, honra e alimentos são concedidos aos mortos, assim as pessoas os mantêm satisfeitos, uma vez estabelecido o acordo com todas as regras de tradição, esse ato de cuidar dos mortos é capaz de torná-los aliados. O ‘culto aos antepassados’ resulta da crença de que os mortos ainda vivem, mas principalmente que as pessoas possam dominá-los. Em “The Religious System os the Amazulu”, o missionário inglês H. Callaway publicou um testemunho a respeito do culto aos antepassados entre os zulus.

Na África do Sul junto aos zulus, esse convívio com os antepassados chega assumir uma forma particularmente íntima. Os antepassados dos zulus transformam-se em cobras e não só andam debaixo da terra como perambulam pelas cabanas, onde adentram com frequência. Essas cobras são conhecidas e não são invisíveis ou míticas, ou seja, strictu sensu, essas cobras mantêm determinadas características dos respectivos antepassados, que são reconhecidas como tais entre os vivos. Os mortos nem sempre foram justos, de maneira tal que as pessoas os conheceram e de cujos erros e fraquezas se recordam, mas os antepassados são chamados pelos seus próprios nomes e lembrados por seus títulos de glória. De tempos em tempos são-lhes oferecidos sacrifícios em sua homenagem, cabras e bois são abatidos, isto é, uma refeição da qual compartilham mortos e vivos. Nessas circunstancias, acredita-se que os mortos mantêm o mesmo comportamento que possuíam quando estavam vivos. A prosperidade de descendência torna-se central para os mortos, de acordo com Elias Canetti em seu livro “Massa e Poder”. Quando se trata de uma dinastia a relação do poderoso com o sucessor é peculiar, pois o sucessor é o filho do todo poderoso, cuja relação com o pai faz-se com dificuldade. Em geral, o filho sobrevive ao pai e por isso haverá de se tornar naturalmente o detentor do poder. Não é espantoso, então, que pai e filho tenham razões suficientes para odiarem-se mutuamente. A morte do pai é ardorosamente ansiada pelo filho, cuja chegada do mais novo ao poder sempre será adiada, em geral, de todas as formas. O sentimento mais extremo de poder se manifesta, portanto quando o soberano não quer filho algum.

Um caso conhecido é o de Shaka, que fundou a nação e o império dos zulus, na África do Sul, no primeiro terço do século XIX. Shaka foi um grande general. Obviamente, recusava-se a casar porque não queria ter herdeiros legítimos. Shaka possuía, porém um harém com centenas de mulheres, no fim somaram-se cerca de1200, que ostentavam o título oficial de ‘irmã’. Era-lhes proibido engravidar e ter filhos, assim um rigoroso controle se exercia sobre elas, para cada ‘irmã’ grávida que se deixasse apanhar era punida com a morte. A existência de um filho com uma dessas mulheres foi lhe ocultada durante um tempo, uma vez descoberto, Shaka o matou com as próprias mãos. Aos 41 anos de idade, rei entre os zulus, Shaka foi morto por dois de seus irmãos. Todo homem carrega consigo os essenciais direitos de soberania dos seus pais, mas nenhum deles se esquece da dominação da mãe: manter uma criatura cativa. Nas mãos da mãe, faz-se crescer crianças como um trigo, mas como animais domésticos, executam movimentos que lhe permitem. O poder de uma mãe é inusitado em relação aos seus filhos, indo além da alimentação, da domesticação e do crescimento. Trata-se de repensar o amor da mãe e seu auto-amor em relação à vida e à morte de seus filhos.

O livro “Beloved” de Toni Morrison nos leva à dolorosa posição ética de uma escrava, Sethe, que é levada ao infanticídio. A criança assassinada por Sethe, sua própria mãe, é uma repetição extemporânea da violenta história das mortes das crianças negras durante a escravidão em muitas partes do sul. Reconstruir a narrativa do infanticídio através de Sethe, a mãe escrava, que é também vítima social, a própria história de nosso juízo ético torna-se submetida a uma revisão radical. Elizabeth Fox-Genovese em um de seus relatos sobre as formas de resistência escrava, no livro “Within the Plantation Household”, considerou o assassinato, a automutilação e o infanticídio como parte de uma dinâmica psicológica de toda forma de resistência. Percebe-se que este ato trágico de violência é executado como parte de uma luta que procura recuar as fronteiras do mundo escravo. Essas formas extremas são capazes, por exemplo, de capturar a essência da auto-definição da ‘mulher escrava’, afirmou Homi Bhabha em seu livro “O Local da Cultura”. Havia os atos de confrontação contra o senhor ou o feitor, resolvidos dentro de um contexto doméstico, mas diferentemente o infanticídio era visto, em geral, como um ato contra o sistema colonial e reconhecia a posição legal da escrava na esfera pública. O infanticídio era visto, enfim, como um ato contra a propriedade do senhor e o seu lucro extra, isto levava algumas das mulheres mais desesperadas a sentir que, ao matar uma criança que amavam, estariam restaurando sua posse sobre ela. Como se a mãe escrava retomasse, através da criança, o direito de posse sobre si mesmo, ou seja, um conhecimento que vem como uma espécie de auto-amor que não deixa de ser o amor ao ‘outro’.

Apartheid, Sharpeville e CNA


África do Sul, um mundo colonial que foi simulta-neamente comparti-mentado e manique-ísta, onde o nativo tornou-se um ser confinado – o apartheid foientão apenas uma das modalidades de compartimentação do mundo colonial que existiu, onde a primeira coisa que se aprende a fazer é a ficar no seu lugar e a não passar dos limites, definiu Frantz Fanon em seu livro “Os Condenados da Terra”. Esse mundo hostil rejeita com todas as suas asperezas a massa colonizada e isto não representa apenas um inferno que se deseja afastar, mas revela um paraíso ao alcance das mãos, protegido por terríveis cães de guarda. As palavras não falarão e o silêncio se congela em imagens do apartheid: carteiras de identidades requeridas, provas forjadas pela polícia, fotografias para fichas de presídios, retratos reticulados de terroristas na imprensa. . As fronteiras que protegiam a ‘pureza’ do espaço britânico estavam sitiadas, a lei colonial operava em torno dessas fronteiras. A lógica de apartheid é a asserção de uma diferença viabilizada em uma sociedade rigidamente segregada, conforme Stuart Hall em seu livro “Diáspora”. Certas práticas tradicionais de racismo diminuíram e pode-se ter tentado ver o fim das leis de apartheid ou das leis de Jim Crow na África do Sul como um término simbólico de uma era inteira de segregação racial. Essas divisões maniqueístas e as rígidas práticas de exclusão na África do Sul devem ser tomadas como paradigma dos ‘racismos modernos’. Não sem reação ou resistência pelos sul-africanos.

Os movimentos de guerrilhas multiplicaram-se na década de 1960, após o endurecimento da política de apartheid sul-africano, com a criação dos ‘lares nacionais’ e, principalmente, com o massacre de Sharpeville, mas sem muito sucesso, devido às rivalidades inter-tribais e sino-soviéticas. Em primeiro lugar, os assassinatos de Sharpeville abalaram a opinião pública durante meses e se tornaram um símbolo nos jornais, nas televisões, nas conversas, foi através desses assassinatos, principalmente, que homens e mulheres abordaram o problema do apartheid na África do Sul. Em segundo lugar, esses movimentos de guerrilha não deixaram de pertencer à velha família revolucionária de 1917, mas também não deixavam de ser diferentes, isto era inevitável, visto que as sociedades analisadas por Marx e Lenin e as da África Subsaariana havia diferenças notáveis, conforme Eric Hobsbawm em seu livro “Era dos Extremos”. Óbvio que o país africano a que melhor essas análises marxistas se aplicavam era ao capitalismo industrializado dos colonos da África do Sul, onde surgiu um verdadeiro movimento de libertação de massa, buscando cruzar fronteiras tribais e raciais – o Congresso Nacional Africano –, com o apoio de um movimento sindical e de um eficiente Partido Comunista.

Os burocratas de Moscou financiaram e armaram durante décadas os guerrilheiros do CNA, aliados dos comunistas, mesmo quando a chance derrubar o sistema de apartheid na África do Sul era mínima. Na África do Sul esse movimento foi desproporcional, muito forte entre umas tribos e relativamente muito mais fraco entre outras [as zulus, por exemplo], com efeito, essa situação foi bem explorada em proveito do próprio regime apartheid. Portanto, as mobilizações ‘nacionais’ baseavam-se em lealdades ou alianças tribais, com exceção do pequeno quadro de intelectuais urbanos educados e ocidentalizados. Por um lado, os imperialistas britânicos mobilizaram tribos contra os novos regimes, por outro, o marxismo-leninismo contribuíra para formar, no país, partidos mais disciplinados, centralizados. Michael Hardt e Antonio Negri examinaram de perto as lutas contra o apartheid na África do Sul, em seu livro “Multidão”, assim exemplificaram a presença simultânea, por um longo período, de duas formas organizacionais, uma em direção as formas centralizadas e outra ligada as novas formas mais disseminadas.

A composição interna das forças que desafiaram e acabaram derrubando o regime de apartheid era extremamente complexa e mudava com o tempo, desse modo, identifica-se, pelo menos a partir de meados da década de 1970, com a revolta de Soweto, e ao longo da década de 1980, uma vasta proliferação de lutas horizontais mais disseminadas, neste sentido o livro “Year of Fire, Year of Ash” de Baruch Hirson é exemplar. O ódio dos negros contra a dominação dos brancos era comum aos vários movimentos sul-africanos, mas eles se organizavam de forma relativamente autônoma em diferentes setores da sociedade: os grupos estudantis foram protagonistas importantes e os sindicatos desempenharam papel central, com sua longa história de militância na África do Sul. Por isso, ao longo desse período, essas lutas mais horizontais mantiveram uma dinâmica relação com os eixos mais hierarquizados ou verticalizados de organizações tradicionais e mais antigas de liderança, como o Congresso Nacional Africano [CNA], mantido em clandestinidade e no exílio até 1990. Dessa maneira as lutas contra o apartheid podem ser comparadas com a Intifada palestina, porque assumem duas formas organizacionais diferentes, balanceada entre uma ‘organização autônoma horizontal’ e uma ‘liderança centralizada’, isto é, perceptível na tensão entre as lutas organizadas [por trabalhadores, estudantes e outros] e o CNA, mas esclarece-se que se trata de reconhecer uma tensão no interior do próprio CNA, que se manteve e se ampliou desde a sua chegada ao poder através das eleições, em 1994. Dale McKinley evidenciou essas tensões no CNA com enfoque na ideologia marxista-leninista em suas críticas de natureza burguesa e reformista, no livro “The ANC and the Liberation Struggle”. Por fim, a África do Sul tornou-se independente da Grã-Bretanha em 1948, mas um regime de brancos ingleses consolidou e ampliou as leis de segregação racial existentes, criando o sistema de apartheid: privando a os negros de seus direitos políticos e os separava, confinando-os em reservas etnotribais [bantustões].

A Revolta política contra o apartheid se iniciou na década de 1960. Esse regime anglófano foi sendo isolado internacionalmente e fustiga internamente, acabando num colapso na década de 1990. Após a Guerra Fria, até mesmo regime de apartheid foi obrigado a recuar. As primeiras eleições no país, em 1994, encerraram o apartheid e inauguraram a democracia. Nelson Mandela, mártir sul-africano, venceu essas eleições e revitalizou as esperanças do continente africano inteiro.

Quashee, Zumbi, Chatsworth: África do Sul


‘África’ é, em todo caso, uma construção moderna, que se refere a uma variedade de povos, tribos, culturas e línguas cujo principal ponto de origem comum situa-se no extinto tráfico de escravos, de acordo com Stuart Hall em seu livro "Diáspora". A ‘África’ expressa uma dimensão de nossa sociedade e história que foi maciçamente suprimida, desonrada, negada e, apesar de tudo o que ocorreu, permanece assim.

A supressão da ‘África’ deu-se de todos os modos possíveis pelos impérios europeus, sobretudo entre os britânicos, o estereótipo foi uma arma simbólica dirigida contra os escravos africanos em suas colônias. Thomas Carlyle destacava, por exemplo, a revitalização da Inglaterra e o seu desenvolvimento, em seu livro “The Nigger Question”, mas que em nada podem contribuir para animar Quashee, um dos estereótipos mais ultrajantes dos negros, cuja feiúra, preguiça e rebeldia os condenam para sempre a um estatuto subumano. O Quashee destinava a produzir riquezas para o uso inglês, assim o ensejo para ele estar ali, silencioso, consiste em trabalhar com obediência e discrição, a fim de manter em funcionamento a economia e o comércio da Inglaterra. Os colonizados africanos foram excluídos dos espaços ingleses em termos, de direitos e privilégios, de pensamentos e valores, sobretudo físicos e territoriais. O sujeito colonizado foi construído no imaginário metropolitano como o outro, o Quashee, posto fora das bases de que definirão os valores civilizados europeus. Dessa maneira, o elemento colonizado negro apareceu obscuro, de início, em sua diversidade. Essa construção de identidades repousava na fixidez das fronteiras entre a metrópole britânica e a colônia sul-africana. Em 1914, o império britânico concedeu autonomia interna às colônias de assentamento branco massivo, conhecidas desde 1907 como ‘domínios’, entre eles a África do Sul. Antes de 1949, as elites tanto sul-africanas como as ocidentais viam a África do Sul como um Estado ocidental. Depois da implantação do regime de apartheid, as elites ocidentais deixaram, pouco a pouco, de enxergá-la como ocidental, enquanto os sul-africanos brancos continuaram a se considerar ocidentais. Para reassumirem seu lugar na ordem internacional ocidental tiveram, entretanto, que introduzir instituições mais democráticas que resultaram na chegada ao poder de uma elite negra fortemente ocidentalizada. Com efeito, se o fator da ‘indigenização’ da segunda geração se fizer funcionar, seus sucessores terão uma perspectiva mais xossa, zulu e africana, assim a África do Sul definir-se-á cada vez mais como um Estado africano.

Na África do Sul, colonizadores europeus criaram uma cultura multifragmentada e levaram o Cristianismo para a maior parte do continente subsaariano, mas as identidades tribais são profundas e intensas pela África, embora os africanos estejam desenvolvendo uma noção de ‘identidade africana’, distinguindo a África Subsaariana como uma única e mesma civilização, com a África do Sul sendo o seu Estado-núcleo, de acordo com Samuel Huntington em seu livro “O Choque de Civilizações”. Deste modo, com a transição da negociação não muito pacífica do apartheid na África do Sul, com seu vigor industrial, seu alto nível de desenvolvimento comparado aos outros países africanos, sua capacidade militar, seus recursos naturais e, sobretudo, sua sofisticada liderança política, assinala-se nitidamente como o país líder da África Meridional e Subsaariana.

Tendo experimentado o que há de melhor e pior do Ocidente, tanto o Cristianismo como o apartheid, a África do Sul tem sido qualificada de modo especial para liderar, de uma só vez, toda a África. Nas décadas de 1970 e 1980, a África do Sul conseguiu a capacidade de fazer armas nucleares, mas essa difusão só se tornou um problema sério após o fim da ordem bipolar, em 1989. A África do Sul não abandonou o programa de desenvolvimento de armas nucleares, apenas destruiu suas armas existentes até então. Essas armas foram fabricadas para impedir ataques vindos do exterior contra o apartheid por um governo branco, que não queria legá-las a um governo negro. Contudo, não se pode destruir a capacidade de fabricar armas nucleares, talvez um governo pós-apartheid possa produzir um novo arsenal nuclear para garantir o seu papel como Estado-núcleo da África e impedir o Ocidente de investir na África. Por enquanto, parece que o retorno às práticas mágicas ancestrais dos sul-africanos não deixa de ser tão bombástico quanto as armas nucleares. Na África do Sul pós-apartheid, alguns fenômenos e formas de rituais mágicos continuaram a ser elementos da vida contemporânea, desafiando a concepção moderna do padrão europeu e do próprio cosmopolitismo sul-africano.

Não se trata de um ressurgimento ‘pré-moderno primitivo’ nem de um fenômeno local, porque estes elementos se manifestam em contextos comparáveis em todo o mundo, sob diversas formas locais. Na África do Sul aumentaram os relatos de fenômenos de ocultismo como bruxaria, satanismo, monstros, zumbis, assassinatos ritualísticos e semelhantes, de acordo com Jean Comaroff em seu artigo “Occult Economies and the Violence of Abstraction: Notes from the South-African Postcolony”. Acompanha-se a essas práticas ocultas, a pobreza que assolou a África do Sul. Em seu artigo intitulado “We Are the Poors”, Ashwin Desai relatou o desenvolvimento de um movimento contemporâneo de protestos contra os despejos e os cortes de água e energia, ocorridos principalmente em Chatsworth, perto de Durban, na África do Sul. Esse movimento se organizou sob uma base comum, onde os negros sul-africanos e os sul-africanos de origem indiana marcharam juntos proclamando ‘Não somos indianos, somos pobres!’, ‘Não somos africanos, somos pobres!’.

Essas manifestações apresentaram suas reivindicações locais, mas nem por causa disto deixaram de alcançar o nível global dessas lutas. Certamente, eles se voltaram contra os funcionários locais e o governo sul-africano, questionando o agravamento da miséria da maioria dos pobres desde o fim do apartheid, mas alegaram também que a globalização neoliberal foi a fonte desta pobreza. Deste modo, durante a Conferência Mundial Contra o Racismo promovida em 2001 pela ONU, os manifestantes sul-africanos tiveram a oportunidade de se manifestar em Durban.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Caliban Argelino [1954-1962]


O que sentiria um argelino ao apresentar a ‘África’ para si mesmo e para os ocidentais, exatamente àqueles povos que lhe haviam pilhado, colonizado e subjugado durante séculos? Torpor por atrocidades desnecessárias ou vaidade pelo sucesso de sua independência. Neste meio-tempo está nosso argelino situado nesse entre-lugar, cuja colonização francesa o deixou. As luzes de uma missão civilizadora se apagaram, deixando de Gaulle no escuro. A relação da França com a Argélia foi, na melhor das hipóteses, uma ‘associação hierárquica’ que ocorreu por intermédio da força, o que se estendeu também para as suas demais colônias. Os franceses se empenharam em um milhão de colonizadores e 800 mil homens em seu exército de ocupação na Argélia, mas se pautavam em um discurso de ‘assimilação colonial’ com referências às teorias raciais que guiavam as estratégias imperiais francesas, como as de G. Le Bom, E. Seillère, A. Sarraut, P. Leroy-Beaulieu, J. Harmand, entre outros.

Na Argélia, desde 1830, entre os governos franceses houve um processo contínuo de tentar afrancesá-la. Assim, os nativos e seus territórios não eram vistos como entidades que pudessem se tornar francesas, mas podiam conquistar possessões com características imutáveis que se requeriam separação e subserviência, mesmo que isso não estivesse prescrito explicitamente na mission civilisatrice. Primeiro, as terras eram tomadas dos nativos argelinos e os seus edifícios ocupados; depois, os argelinos eram removidos das cidades e, num mesmo gesto, elas eram povoadas por colonos franceses, como Annaba, antes chamada Bônes, a 25 km dali ficava o povoado de Mondovi, fundado em 1849 por agricultores ‘vermelhos’ deportados de Paris, que expropriavam terras argelinas; a seguir, os colonos franceses já estavam tomando conta das matas de sobreiros e jazidas minerais. Daí resultou, ou a partir de 1830, uma economia motivada por esse ‘capital de pilhagem’, pelo decréscimo dos nativos, pelo aumento de colonos – economia européia colonial dual, em geral, uma economia empresarial francesa coexistiu com uma economia pré-capitalista de bazares argelinos. Essa estratégia no domínio imperial francês assemelhava-se a uma espécie de ciência ou prática geral de se governar ‘criaturas inferiores’, cujas terras, recursos e destinos estavam a cargo da França.

Como um povo ou cultura pode imaginar seu próprio passado na medida em que se torna independente? Duas uma, pode-se fazer como Ariel, ou seja, ser um solícito servidor do Próspero, mas outra possibilidade é fazer como Caliban e buscar por trás dos nacionalismos, nativismos, radicalismos, o momento em que foram produzidas as expressões da négritude, fundamentalismo islâmico, arabismos entre outros, conforme Edward Said em seu livro “Cultura e Imperialismo”. A perspectiva inaugural do nacionalismo antiimperialista sempre vai partir da tomada de consciência de si como um membro de um povo sujeitado, subalterno, com efeito, daí resulta literaturas, partidos políticos, lutas minoritárias, de gênero e, na maioria das vezes, Estados Independentes. Desses movimentos deriva também um corrente perigo, a consciência nacional pode apenas substituir as autoridades e os burocratas brancos por equivalentes de cor, não assegurando que os velhos arranjos imperiais sejam repetidos: chauvinismos, xenofobia são perigos reais. Mas o Caliban precisa ver a complexidade social de sua história e compartilhá-la com a história de homens e mulheres, como ele, subjugados. A négritude de Leopold Senghor, o movimento rastafári, o projeto de Garvey [a volta dos negros americanos para África], as descobertas essencialistas muçulmanas da era pré-colonial, todas essas re-voltas não deixam de ser nativistas e, por vezes, reforçam até distinções hierárquicas, já que valorizam o lado mais fraco, mas nem por isso podem ser julgadas por adorarem o negro e ao mesmo tempo o detestarem. No caso argelino, Frantz Fanon percebeu uma divisão, em seu livro “Os Condenados da Terra”, entre a burguesia nacionalista da Argélia e a tendência liberalista da Frente Libertação Nacional argelina [FLN], o que estabelecia padrões óbvios de conflito.

Uma vez deflagrada a insurreição, as elites nacionalistas buscariam certa paridade com a França: reivindicação de direitos humanos, autodeterminação, sindicatos e, assim por diante. O partido nacionalista oficial se viu forçado a cooptar e a se assimilar às autoridades dirigentes, tornando-se ‘mímicos’, desta forma diversas tensões surgiram no âmbito nacionalista: campo-cidade, líder/liderados, campesinato/burguesia, todas exploradas ainda pelos imperialistas. A sociedade colonial argelina pode ser observada em relação ao império francês como entidades discrepantes, após a independência, mas relacionadas, ao mesmo tempo em que representa um público duplo, na relação obscura de uma libertação que acorrenta o nativo ao Ocidente. Portanto, em pleno processo de descolonização, os ‘nativos’ insurgentes recriaram o seu passado pré-colonial, como na Argélia durante a ‘Guerra de Independência’ [1954-1962], quando argelinos e muçulmanos foram levados a criar representações sobre aquilo que julgavam ter sido o período anterior à colonização francesa. Essa foi uma estratégia visível em obras de poetas e literatos de quase todo o mundo colonial, mas tal estratégia nativista se deslocou do meio acadêmico e incorporara-se a grupos ‘manipuladores-nativos’ que aproveitavam da situação para encobrir corrupções e tiranias.

Na Argélia, quase todos os homens, que chamaram um dia o povo para a luta nacional, foram condenados à morte ou foram procurados pela polícia francesa. Quando, em 1956, depois da rendição de Guy Mollet diante dos colonos da Argélia, a Frente de Libertação Nacional constatou, num panfleto, que o colonialismo só desistiria com uma faca no pescoço: nenhum argelino achou esses termos violentos demais. O homem colonizado se liberta na violência, a poesia de Aimé Césaire assumiu essa perspectiva precisa da violência, em uma significação profética. Um bandido que ocupara o campo durante dias seguidos diante de policiais lançados em sua perseguição, ou aquele que, num combate singular, se sucumbisse depois de abater quatro ou cinco policiais, e aquele que se suicidara para não ‘entregar’ os seus cúmplices constituíram esquemas de ação para o povo, ‘heróis’. E de nada serve dizer que tal herói fora um ladrão, um crápula ou um depravado. Se o ato pelo qual esse homem foi perseguido pelas autoridades coloniais era um ato dirigido exclusivamente contra ele, logo, demarcação nítida e processo de identificação imediato. Béhanzin, Soundiata, Samory, Abdel Kader reviveram com uma particular intensidade no período que precedeu a história do povo colonizado em resistência nacional à invasão francesa.

Na guerra da Argélia, os repórteres franceses mais liberais utilizavam expressões ambíguas para caracterizá-la; a França testava suas bombas atômicas em território argelino; alguns recrutas argelinos foram verdadeiros reféns incorporados às forças francesas, por sorte que o dirigente da insurreição chegava a ver a nação naufragar e tribos inteiras se constituírem como harkis e, dotados de armas modernas, tomavam o curso da guerra e invadiam a tribo rival, rotulada, nessa circunstância de nacionalista. A unidade nacional desmoronava e a insurreição enfrentava uma manobra decisiva: o povo argelino, uma massa de famintos e de muitos analfabetos, homens e mulheres, que mergulharam num obscurantismo a séculos, enfrentavam tanques e aviões, napalm e os serviços psicológicos, mas principalmente corrupção e lavagem de cérebro, os traidores e os exércitos ‘nacionais’ do general Bellounis. Esse povo resistiu, apesar dos fracos, dos hesitantes, dos ditadores aprendizes, porque os sete anos de luta lhes abriram horizontes insuspeitos. Arsenais funcionaram nas montanhas, tribunais foram instalados em todas as instâncias, comissões locais desmembraram as propriedades coloniais e elaboraram a Argélia dos argelinos, desde 1962.

Eletrochoque e Psicoses: Argélia 1954-1962

A guerra argelina foi um conflito de brutalidade peculiar e ajudou a ‘institu-cionalizar’ a tortura nos exércitos, polícias e forças de segurança de países, como a França, que se diziam civilizados. Popularizou-se o infame uso generalizado da tortura com choques elétricos aplicados na língua, bico dos seios, órgãos genitais, levando a derrubada da IV República [1958] e quase a da V República [1961], antes de a Argélia conquistar a independência e o general de Gaulle reconhecer sua inevitabilidade, conforme Eric Hobsbawm em seu livro “Era dos Extremos”. Em países como a Argélia percebe-se uma resistência de uma comunidade parcialmente surgida da inferiorização colonial que se prolongou como um conflito cultural e armado contra uma potência imperial como a francesa e, depois, cedeu lugar a um Estado ditatorial de partido único, mas com uma oposição islâmica fundamentalista, opondo-se principalmente às práticas coloniais francesas de tortura e deportação. Os franceses contra-atacaram, então, os levantes promovidos pelos argelinos em busca de independência nacional, mas este era um território em que uma população local coexistia com um grande número de colonos europeus, dificultando o processo de descolonização. Desse modo, não houve apenas dominação na Argélia, mas a decisão de ocupar um ‘terreno’, onde os argelinos, as mulheres de haik, as palmeiras e os camelos formavam tão-somente a paisagem natural da presença humana francesa.

A guerra de libertação nacional travada pelos argelinos foi total, o que favoreceu a eclosão de distúrbios mentais, em geral, rubricadas por distúrbios de ‘psicoses reacionais’: o desencadeante principal foi a atmosfera sangrenta e impiedosa de práticas desumanas. Essa ‘guerra colonial’ assumiu o aspecto autêntico do genocídio. Não são incomuns, no entanto, publicações sobre patologia mental entre recrutas engajados na ação militar e civis vítimas do êxodo e dos bombardeios. A Guerra da Argélia pode, mesmo assim, ter sido original até na própria patologia que produziu. Segue-se esse derramamento patológico, descrito por Frantz Fanon em seu livro “Os Condenados da Terra”:

[1] as pulsões homicidas indiferenciadas de um sobrevivente de uma liquidação coletiva – S., 37, um camponês habitante de uma aldeia em Constantinois que nunca tratou de política. Desde o início da guerra, sua região foi palco de batalhas violentas entre as forças argelinas e o exército francês, ele teve assim a ocasião de ver mortos e feridos, mas se manteve afastado, mesmo que periodicamente, como o conjunto desse povo camponês, ele ajudasse os combatentes argelinos de passagem. Num dia, no início de 1958, ocorreu uma emboscada terrível não muito longe da aldeia. As forças inimigas montaram uma operação e cercaram a aldeia, aliás, vazia de soldados, horas depois, um oficial francês chegou de helicóptero e disse: ‘essa aldeia dá muita confusão. Destruam!’ Os soldados começaram a atear fogo nas casas, mas algumas que mulheres tentavam recolher roupas ou mantimentos eram repelidas a coronhadas, enquanto alguns camponeses aproveitaram para fugir. O oficial ordenou que se reunissem os homens restantes e os levassem para perto do rio onde o massacre começou. S. foi ferido por duas balas atravessadas na coxa direita e no braço esquerdo;

[2] psicose ansiosa grave de tipo despersonalização após o assassinato de uma mulher – Dj., 19, ex-estudante, militar na ALN. Quando chegou ao Centro estava doente já há vários meses, muito deprimido, lábios secos, mãos úmidas, suspiros incessantes, insônia tenaz. Duas tentativas de suicídio desde o início do distúrbio ele adotava atitudes de escuta alucinatória. O doente falava de seu sangue derramado, das suas artérias que se esvaziavam, do seu coração que falhava, ainda suplicava para que se detivesse a hemorragia e que se impedisse de ‘vampirizá-lo’ no hospital. Não conseguia mais falar e pedia um lápis. Escreveu: ‘não tenho mais voz, toda a minha está indo embora’;

[3] assassinato, por dois jovens argelinos, de 13 e 14 anos, de um colega europeu – dois jovens argelinos, alunos de uma escola primária foram acusados de ter matado um de seus colegas europeus. Reconheceram ter cometido o ato, eles reconstruíram o crime e foram feitas fotos, nelas se vê um dos meninos segurando a vítima, enquanto o outro a esfaqueava. Os pequenos acusados não modificaram suas declarações;

[4] psicoses puerperais entre as refugiadas – psicose puerperal é o conjunto de distúrbios mentais que ocorrem na mulher por ocasião da maternidade, as suas duas principais causa estão ligadas a um transtorno no funcionamento das glândulas endócrinas e a existência de um ‘choque afetivo’. Encontraram-se cerca de 300.000 refugiados nas fronteiras da Argélia com Tunísia e Marrocos, desde que o governo francês decidiu praticar a política de ‘zona-tampão’ e de ‘terra-arrasada’ em centenas de quilômetros. É preciso considerar o estado de indigência em que esses refugiados vivem, em extrema precariedade e miséria, além da desnutrição que reina nesses campos, onde as mulheres grávidas mostravam especial predisposição para a eclosão de psicoses puerperais. Sabe-se que foram incontáveis os bombardeios franceses em territórios marroquinos e tunisianos, Sakiet-Sidi-Youssef na Tunísia foi o exemplo mais sangrento, as invasões frequentes das tropas francesas que se valiam do ‘direito de seguimento e perseguição’, das diversas incursões aéreas, das rajadas de metralhadora do exército francês e o estado de desmembramento familiar, consequência do êxodo, mantendo esses refugiados em insegurança permanente. Poucas argelinas refugiadas deram à luz sem apresentar distúrbios mentais;

[5] depois do choque elétrico – patriotas argelinos torturados com choques elétricos, no momento em que a eletricidade fazia parte de um conjunto de processos de torturas, desde setembro de 1956, para a realização de certos interrogatórios. Casos de cenestopatias, de apatias, de medo fóbico de eletricidade foram encontrados depois do tratamento de choque;

[6] depois do soro da verdade – diante de um doente que sofre de um conflito e não consegue exteriorizá-lo num interrogatório, recorreu-se a métodos de exploração química, o Pentotal, por injeção intravenosa.

Na Argélia, os médicos militares pensaram na hipótese de que se o Pentotal fosse capaz de varrer as barragens que se opunham à evidência de um conflito interior, então, entre os patriotas argelinos ele deveria varrer também a barragem política e facilitar a confissão do prisioneiro, sem recorrer a eletricidade, numa espécie médica de ‘guerra subversiva’. Enfim, camaradas, vamos e não percam tempo com litanias ou mimetismos nauseantes, deixem essa Europa que fala sem parar do homem e ao mesmo tempo o massacra em todos os lugares em que o encontrar, nas esquinas, nas ruas, em todo lugar do mundo.

Razzia e shari’ah [Argel - 1962]


Entre as décadas de 1930 e 1940, quando o Norte da África ocupava lugar de destaque que, em nenhum momento e por nenhum francês, ainda não se reconhecia que as colônias pudessem se tornar independentes, mesmo com a presença de movimentos nacionalistas, que representavam para os franceses apenas sérios desafios. Manuela Semidei questionou os abusos discursivos franceses para persuadir ideologicamente os escolares argelinos, a partir do uso de textos escolares no entreguerras que comparavam a França favoravelmente em relação à Inglaterra; mas se na vida cotidiana houve alguma referência à violência na Argélia, ela deve ter sido feita de modo que a França se sentia obrigada a fazê-la, mas em compensação a Argélia tornava-se uma ‘nova França’, próspera, com escolas, hospitais e estradas. Na Argélia, os franceses proibiram o árabe como língua formal de ensino e administrativo, mas após 1962, a FLN [Frente de Libertação Nacional Argelina] o transformou na única língua oficial e implantou um novo sistema de educação árabe-islâmica. A FLN promoveu, a seguir, uma política de absorção de toda a sociedade argelina que evidentemente levou a concentração da maioria das atividades políticas nas mãos de um único partido, mas foi inegável o surgimento de uma oposição islâmica, que lutava em favor de uma identidade argelina militante muçulmana baseada em preceitos corânicos [shari’ah], ou seja, o estabelecimento de uma democracia em que ambos reivindicavam o direito de governar.

Assim, nos países islâmicos ocidentais um conflito tornou-se patente e explosivo entre os velhos seculares e a nova democracia de massa islâmica, por isso, em meados do século XX, da Argélia à Turquia, achava-se um estado de colapso, cujas condições para derrubada de regimes odiados e deslegitimados existiam ao lado de levantes populares com a liderança de forças capazes de substituí-los. Torna-se necessário recriar, contudo, um retrato da psicologia de conquista argelina das décadas de 1930 e 1940 para identificar a sua dinâmica inevitável de miniaturização da presença árabe-muçulmanos.

Sobre essa miniaturização francesa do muçulmano, percebe-se que ela foi difundida por um drástico exemplo, quando Alexis de Tocqueville chegou a criticar a política americana em relação aos negros e aos indígenas, acreditando que o avanço da civilização européia exigia crueldade em relação aos indigènes muçulmanos. Ele considerava o islamismo uma poligamia, onde as mulheres estavam isoladas e sem vida política, sob tirânicos governos que obrigavam aos homens a se satisfazerem integralmente em seus lares. Como Tocqueville achava que essa ‘tribo’ era nômade, tornava-se necessário usar todos os meios para devastá-las. Em 19846, Tocqueville não se pronunciou sobre as centenas de árabes que foram asfixiadas por fumaça durante as razzias que ele mesmo aprovara. No império francês, o general Changarnier insistia em justificar os ataques de seus soldados a povoados pacíficos, porque, para ele, a ruína e a destruição total são admitidas, não porque Deus as legitimam, mas porque, de Burgeaud a Salan, ‘os árabes só entendem a força bruta’.

Entre os argelinos e os franceses, Albert Camus não deixou de se referir à morte de árabes tanto em L’étranger quanto em La Peste, afinal ele se preocupava mais com o estado real dos assuntos franco-argelinos e com uma intervenção efetiva na história das iniciativas francesas na Argélia, de torná-la e mantê-la francesa, do que em escrever romances sobre o seu estado de espírito. Em suma, se os romances e contos de Albert Camus destilaram tradições, lugares-comuns e estratégias discursivas sobre a apropriação francesa da Argélia, com destaque para a sensação de repúdio aos islâmicos na Argélia, num tom de propaganda imperialista. Questiona-se, pois se a França ainda permanece como um ‘estado colonial’? Ou melhor, será que a sociedade francesa conservou traços de um passado colonial que estaria na base do tratamento que ela dispensa a uma parcela da população? Em 1990, por exemplo, 76 por cento do povo francês achavam que havia árabes demais na França. Por isso, Étienne Balibar afirmou que se construiu uma categoria social e jurídica humanamente monstruosa na França, que a ‘condição hereditária do imigrante’: uma vez migrante; migrante para sempre. Não é por acaso que municipalidades frequentemente exercem um direito de preempção sobre os terrenos destinados a se construir mesquitas, obedecendo a lei de 1905, que estipula ao Estado francês o dever de garantir o livre exercício de diferentes cultos, de forma paritária, caso ele não possa subvencioná-los.

Recentemente um tribunal administrativo, sobre a apresentação de uma queixa feita pelo Movimento Nacional Republicano de Bruno Mégret, em nome da luta contra ‘o islamismo em nosso país’, anulou o arrendamento enfitêutico [concessão de um terreno por um prazo de 99 anos, pela soma simbólica de 1 real] que um município havia acordado para a construção de uma mesquita, reparou Robert Castel em seu livro “A Discriminação Negativa”, que a justiça mesma sede às pressões da ‘islamofobia’, em detrimento do espírito da lei sobre a laicidade, que tende a desconhecer o Islã, a segunda religião mais forte na França. Dessa ‘islamofobia’ destaca-se também as estatísticas da Direção da administração carcerária, citadas por Farhad Khosrokhavar, de fato, os muçulmanos aprisionados representam os habitantes masculinos das periferias [as mulheres são pouco numerosas]. Um fato permanece – aqueles cujos pais são de origem magrebina estão exageradamente representados. Certamente as periferias francesas estão transferindo o seu controle para o islamismo, desde então, ouve-se falar de uma ‘escalada islâmica’ que cria perigos para a República francesa, talvez porque o islamismo sempre foi a forma mais extremada de comunitarismo, ou seja, a negação da soberania dos indivíduos e a afirmação da igualdade entre os cidadãos, paradoxalmente, esses são os mesmos princípios sobre os quais se construiu supostamente a nação francesa.

Especialmente, com a descolonização, a Europa vem se reduzindo territorialmente às suas próprias entranhas e penínsulas, mas o mundo agora é tanto árabe e asiático quanto africano, principalmente, com o recente declínio da hegemonia norte-americana, pós-11 de setembro. Mas ninguém imaginaria que Samuel Huntington, em seu livro “O Choque de Civilizações”, fosse capaz de destinar ao Islã a capacidade de desempenhar o mesmo papel, na idade contemporânea, que a ética protestante desempenhou na história ocidental, principalmente porque os movimentos fundamentalistas islâmicos sempre foram competentes na utilização de técnicas de comunicação e organização para difundir suas mensagens.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Aiatola Khomeini versus xá Reza [1979-2003]


A maior de todas as revoluções da década de 1970 foi, de longe, a derrubada do xá Muhammad Reza Pahlevi no Irã em 1979. Como o xá foi reposto no trono em 1953, por um golpe organizado pela CIA, contra um grande movimento popular, ele não acumulou muitas lealdades nem dispunha de legitimidade que pudesse recorrer. Sua própria dinastia, os Pahlevi, remontava apenas ao golpe dado pelo fundador, Reza Shah, um soldado de brigada que assumiu o título imperial em 1925. Tratava-se, então, da possível implantação do programa de modernização e industrialização empreendido pelo xá, com apoio dos EUA e baseado na riqueza petrolífera do Irã, supervalorizada com a revolução dos preços após 1973. Enquanto o aiatolá Ruholá Khomeini, idoso e eminente, estava no exílio desde meados da década de 1960, mas no início da década de 1970, ele pregava uma forma de ‘governo islâmico total’, ao propor que o clero tinha o dever de se rebelar contra autoridades despóticas e tomar o poder: em suma, uma ‘revolução islâmica’.

Autoridades religiosas do mundo não deixam, em geral, de procurar novas formas de governo, sob o apelo à tradição, à identidade nacional e religiosa. Esses apelos são ampliados e disseminados por um sistema de comunicação dirigido à cultura de massa. Inovação radical, porque esses apelos eram comunicados às massas através de fitas-cassetes e, normalmente, elas as ouviam. Os jovens estudantes agiram, em 1978, fazendo uma manifestação contra um suposto assassinato realizado pela polícia secreta, muitos foram metralhados, o que ilustrou essa ressonância entre o aiatolá e as massas. Organizaram-se outras manifestações de luto a esses mártires, repetidas a cada quarenta dias. Essas manifestações foram aumentando até que, no fim do ano, milhões de pessoas estavam nas ruas para se manifestar contra o regime do xá. Os guerrilheiros entraram em ação; os trabalhadores do petróleo entraram em greve; os bazares fecharam – o país ficou num impasse, afinal o exército iraniano não conseguiu conter os levantes, ou se recusou a suprimi-los? Em 16 de janeiro de 1979, o xá foi para o exílio e a Revolução Iraniana tinha vencido. Logo no início Khomeini declarava que o Irã estava de fato em guerra contra os Estados Unidos. Antes disso, David Harvey rememorou o imperialismo britânico, em seu livro “O Novo Imperialismo”, quando, no final da década de 1960, os ingleses encerraram toda a sua presença militar a leste de Suez, deixando o comando aos Estados Unidos, que preferiram usar seus Estados representantes [Irã e Arábia Saudita, na época] para cuidar dos seus interesses na região.

Os Estados Unidos aproveitaram para proteger os ‘regimes clientes’ de todo o mundo, ou seja, todos os que estivessem favoráveis aos seus interesses. A derrubada de Mohammed Mossadegh, que nacionalizou os campos de petróleo do Irã, foi seguida por uma substituição, a do xá Reza Pahlevi em 1953 [apoiada pela CIA], com efeito, compensada pelos subsequentes cuidados que o xá deveria ter com os interesses norte-americanos na região do Golfo. Mas com o primeiro boicote do petróleo em 1973, que se associou a queda do xá do Irã, em 1979, tornou-se insustentável a solução indireta norte-americana. O movimento conduzido pelo aiatolá Khomeini no Irã destronou o xá, um dos principais aliados dos Estados Unidos, apoderando-se da embaixada dos EUA, além de despertar reações histéricas nos americanos. Os Estados Unidos financiaram e estimularam, portanto, a brutal guerra que o Iraque moveu contra o Irã ao longo de oito anos [1980-8]. Os EUA encorajaram, em geral, o mundo todo durante a ‘guerra Irã-Iraque’ e, em particular, Saddam Hussein, para conter ao máximo o regime iraniano, por isso o Iraque usou gás venenoso a revelia contra soldados e civis, dentre tantas outras barbaridades e atrocidades.

Até que houve, ao longo dos anos, uma expansão insólita do regime de Hussein em torno da região do Kwait, mas será que isso foi suficiente para os norte-americanos acusar Saddam Hussein de louco? Ou então, de um conquistador? Quando o Iraque invadiu o Kwait no dia 2 de agosto de 1990, Saddam Hussein não imaginava, certamente, que perderia a guerra e seu poder nem que viria as tropas ocidentais invadirem o Iraque. Provavelmente, esta ocupação em território kwaitiano poderia até expor as fraquezas do mundo ocidental e dos EUA, na medida em que expunha um ‘mundo árabe’ fortalecido em termos militares. Sabe-se que o Iraque foi sobrecarregado por invasões, embargos e intimidações a fim de destruir suas armas de destruição em massa, cujas ações da ONU foram em parte bem-sucedidas, mas em parte mal-sucedidas. Por que então as forças dos EUA não marcharam sobre Bagdá em 1991? Porque os falcões não imaginariam ser capazes de rastrear todos os poros do solo iraquiano, durante uma guerra que se estendeu de 2003 a 2008, nem que poderiam capturar Saddam Hussein, julgá-lo em um Tribunal Penal Internacional, condená-lo à morte e matá-lo.

Os norte-americanos nunca duvidaram que fosse possível marchar de volta para casa logo depois, mas eles marchariam inevitavelmente após perpetuarem sua reconhecida prática de impor democracias, bombardear toda a infra-estrutura de um país, chacinar grande parte de uma população jovem de curdos, xiitas, sunitas e deixá-la à mercê das frestas dos escombros. Mesmo com as ondas de terror islâmico ou com a possibilidade iminente de regimes democráticos tentarem invadir os desertos do Oriente Próximo, ainda assim se pergunta: o que o exército fundamentalista norte-americano, com seus falcões yuppie-fardados e mercenário-milicianos, não será capaz de fazer para tentar controlar poços de petróleo no Irã e no Iraque? Por petróleo, a impressão que se tem é que os EUA fariam tudo, ressuscitariam um xá, colocariam um Hussein contra um aiatolá, degolariam esse Hussein e voltariam para casa, deixando para trás fumaça, poeira, escombros, ou seja, não resta dúvida: eles fariam tudo de novo.

Umma Muçulmana


Talvez só os fundamen-talistas do Islã mais extremados rejeitem a moderniza-ção e a ocidentali-zação. Eles atiravam aparelhos de televisão nos rios, proibiam o uso de relógio de pulso e até rejeitavam o motor de combustão interna. Com isso, entre as décadas de 1980 e de 1990, os islâmicos seguiram uma direção anti-ocidental, o que foi uma consequencia natural da reação contra a gharbzadegi [ocidentoxição] percebida por eles, o que significou o repúdio da influência européia e norte-americana sobre a sociedade, a política e a moral locais. Até porque o Islã também tem sido questionado, entre diversos países, por sua provável fonte de proliferação nuclear e por suas práticas terroristas e, pelos europeus, por serem imigrantes indesejados.

O ‘ressurgimento islâmico’ aplicou esforços para restituir uma legislação não ocidental. No Egito, no início da década de 1990, as organizações islâmicas desenvolveram uma extensa rede de entidades que prestavam serviços, assistenciais, educacionais, assim por diante, preenchendo o vazio deixado pelo governo para o grande número de pobres egípcios. Na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza, as organizações islâmicas operavam ‘sindicatos’ de estudantes, organizações de jovens, associações religiosas, sociais e educativas [estabelecimentos de ensino que vão do jardim da infância até a universidade], inclusive clínicas, orfanatos, asilos, instituições jurídicas. As organizações islâmicas também se espalharam por toda a Indonésia, nas décadas de 1970 e 1980, a maior delas, a Muhhammadijah, contava com seis milhões de membros e prestava serviços do tipo ‘do berço ao sepultura’, conforme Samuel Huntington em seu livro “O Choque de Civilizações”. Na Ásia Central, historicamente, as identidades nacionais tendem a ser menos proeminentes que as lealdades às tribos, aos clãs e às famílias extensas, mas as pessoas possuem idiomas, religião, cultura e estilos de vida em comum, consequentemente o Islã torna-se a força unificadora mais coerente entre as pessoas.

Em todo o Islã, portanto, o grupo pequeno e a grande fé, a tribo e a ummah, formam os principais focos de lealdade. No mundo árabe, enfim, os Estados existentes possuem em geral problemas de legitimidade, porque parecem resultar do imperialismo europeu. Se o fundamentalismo islâmico parece rejeitar o Estado-nação em favor da unidade do Islã, como a ‘unidade muçulmana’ [ummah] pode compreender as ações dos Estados e das organizações internacionais? Em 1969, por exemplo, dirigentes da Arábia Saudita, Paquistão, Marrocos, Irã, Tunísia e Turquia organizaram a primeira reunião de cúpula islâmica em Rabat. Decerto a ummah não busca promover um Estado-nação, mas de que modo ela poderia estabelecer a unificação islâmica? Através das ações de um ou mais Estados-núcleos fortes? Deste modo, um Estado-núcleo islâmico precisaria possuir os recursos econômicos, o poderio militar, a capacidade organizacional, o engajamento islâmico para prover a liderança política e religiosa da ummah. De tempos em tempos, mencionam-se seis Estados como possíveis líderes do Islã: Indonésia, Egito, Irã, Paquistão, Arábia Saudita e Turquia. Os muçulmanos chegam a representar cerca de um quinto da população mundial, mas será que foram eles, mais do que qualquer outra civilização, quem se envolveram em violências intergrupais? Os muçulmanos alegam, pois que o Ocidente faz guerra contra o Islã, do mesmo modo que os ocidentais alegam constantemente que grupos islâmicos fazem guerra contra o Ocidente, então, parece razoável deduzir que algo muito parecido com uma guerra está realmente acontecendo.

Até a invasão do Iraque em 2003, essa ‘quase-guerra’ parecia do ponto de vista militar uma ‘guerra terrorista’ versus o ‘poder aéreo’. Enquanto os militantes fundamentalistas islâmicos migraram para alguns países ocidentalizados e colocavam carros-bombas em alvos precisos, os militares ocidentais se aproveitaram dos céus abertos do Islã e lançavam bombas sobre alvos selecionados. Ted Robert Gurr afirmou que os muçulmanos participaram de 26 dos 50 conflitos etnopolíticos que ocorreram no período de 1993-4, ou seja, pouquíssimo mais que a metade, resultado apresentado em seu artigo intitulado ‘People Against States: Ethnopolitical Conflicts and the Changing World System’. Dessa forma, intensos conflitos se espraiaram entre povos muçulmanos e não muçulmanos.

Na Bósnia, por exemplo, os muçulmanos travaram uma guerra sangrenta com os sérvios ortodoxos e se engajaram em outras ações violentas com os croatas católicos. Em Kosovo, os muçulmanos albaneses resistiram, sob a autoridade sérvia, e mantiveram seu próprio governo, mesmo que paralelo e clandestino. Em Chipre, os turcos muçulmanos e os gregos ortodoxos sobrevivem com seus Estados hostis. O Paquistão e a Índia travaram alguns conflitos grandiosos, mas os imigrantes muçulmanos lutam contra hindus, periodicamente, engajando-se em distúrbios de rua e outras violências. Se os participantes fundamentalistas islâmicos planejavam assassinatos de ocidentais proeminentes, os EUA planejavam a derrubada de regimes fundamentalistas islâmicos mais extremistas, contudo, essas práticas não se repetiram mais, pelo menos nas últimas eleições presidenciais iranianas, mesmo com os ‘Piquetes-Twitter’ da oposição neoliberal, apegada ao ocidentalismo americano-israelense, ao reeleito Mahmoud Ahmajinejad.

O Terror-Teocrático [Fundamentalismos]


O fundamen-talismo islâmico é uma típica teocracia que avançou tanto pela mobilização em massa de pessoas contra governos impopulares quanto pela própria vontade de Alá. Quem invocaria apenas a natureza misericordiosa de Deus ao ser mobilizado por Khomeini ou Saddam Hussein? Quando bastava apenas servir, lutar, fulminar. Do mesmo modo que Reagan e Thatcher exigiam, durante a Guerra Fria, o serviço obediente de seus cidadãos, com um poder que só alguns sacerdotes eram capazes de possuir. É evidente que a religião fundamentalista dinamizou e mobilizou massas nas últimas décadas do século XX. O Islã não mobilizou as massas, por exemplo, com uma mensagem reformadora e modernizadora, mesmo que os discípulos de Jamal al-Din al Afghani no Irã, Egito e Turquia; de seu seguidor Mohammed Abdun no Egito; do argelino Abdul Hamid bem Badis não estivessem nas aldeias, mas nas escolas e universidades, onde uma mensagem de resistência às potências européias encontrou audiência. Apesar disso, os revolucionários islâmicos que chegavam ao poder geralmente eram modernizadores seculares. Percebe-se que foi mais fácil, entretanto obter a mobilização das massas através da religiosidade antimoderna, ou seja, através do ‘fundamentalismo islâmico’.

Muitos ‘movimentos fundamentalistas’ ganharam terreno em vários países do Terceiro Mundo, mas não de modo exclusivo, na região islâmica eram especificamente, por exemplo, revoltas contra o mundo moderno, onde os sujeitos estavam cônscios de que faziam parte de um mundo muito diferente do de seus pais. Esse mundo chegava a eles através dos ônibus ou caminhões que circulavam empoeirados pelas estradas marginas, da bomba de gasolina, do radinho transistorizado, mas principalmente de um mundo onde as pessoas migravam aos milhões da zona rural para as cidades. A ascensão do ‘fundamentalismo islâmico’ foi visivelmente um movimento contra o Ocidente, afirmou Eric Hobsbawm em seu livro “Era dos Extremos”. O apelo da religião politizada se mostrava mais amplo na medida em que as religiões mais tradicionais eram inimigas da civilização ocidental, porque eram, para elas, exploradores da pobreza do mundo. Não por acaso os ativistas desses movimentos perseguiam turistas ocidentais, como no Egito, ou assassinavam moradores ocidentais, como na Argélia. Mas a xenofobia popular nos países ricos se dirigia contra estrangeiros vindos do Terceiro Mundo, tornando-se mais visível quando a União Européia represou suas fronteiras contra a inundação de pobres terceiro-mundistas em busca de trabalho. No entanto, em termos políticos e militares, cada lado se posicionava muito além um do poder do outro. Era improvável que houvesse um dissuasor efetivo, mesmo que alguns países do Terceiro Mundo estivessem em posse de mísseis nucleares. Contudo, tornava-se cada vez mais claro, na última metade do século XX, que o Primeiro Mundo poderia até vencer batalhas, mas nunca guerras contra o Terceiro Mundo, ou antes, que a vitória em guerras, mesmo se possível, não asseguraria jamais o controle de tais territórios.

Desapareceu, enfim, a disposição das populações coloniais de deixarem-se, uma vez vencidos, administrar por ocupantes europeus ou americanos. No século XX ressurgiram fundamentalismos cristãos e islâmicos, mas também judaicos, hindus, budistas, que partilharam características comuns: insistiam numa versão puritana da prática religiosa e enalteciam a integridade da tradição religiosa. Partilhavam outra característica: uma oposição às estruturas de poder dominante do sistema capitalista mundial moderno. Combinação, portanto de um retorno ao ‘fundamental’ e à retórica ‘anti-sistêmica’, ressaltou Immanuel Wallerstein em seu livro “O Declínio do Poder Americano”. Em uma rasa genealogia, o termo ‘fundamentalismo’ deriva da história do protestantismo nos EUA, no início do século XX, grupos da igreja Batista, principalmente, exigiam um regresso ao ‘fundamental’, ou seja, eles acreditavam que tanto a teologia quanto as práticas cristãs tinham sido invadidas por várias idéias modernistas, seculares, que as desviavam do caminho. Pretendiam, pois um regresso às crenças e práticas de gerações anteriores. Por analogia, o ‘fundamentalismo islâmico’ tornou-se o atributo de grupos islâmicos que buscavam o culto de práticas mais antigas e puras, afinal consideravam as visões modernas de mundo um desvio no caminho dos seus fiéis.

Se essa expressão em uso deriva da história cristã, então nunca foi peculiar ao Islã. Moisés poderia ter sido muito bem talvez o primeiro a usar uma bioarma, quando o Senhor lhe dizia para jogar cinzas em direção ao céu na presença do faraó. Quando ele o fez, as cinzas se tornaram furúnculos na pele e cresciam como bolhas nos homens e animais como comentou Susan Willis, sobre o possível vínculo do antraz com a postura judaico-cristã, em seu livro “Evidências do Real”. Assim, somente após o 11 de setembro, com o antraz espalhando terror pelos EUA, que a polícia prendeu Clayton Lee Waagner, que se autoproclamava do ‘Exército de Deus’, suposto grupo fundamentalista americano, ao se confessar culpado por mais de 550 ameaças de antraz contra clínicas de laboratório. Ele enviava suas ameaças via FedEx, usando o número da conta das próprias clínicas para o pagamento dos serviços postais. Rumores se espalhavam por aquelas correspondências, na atmosfera que gerou os trotes de antraz. Em uma atmosfera de fundamentalismo na qual todas as formas de terror são igualmente absolutas, enquanto os norte-americanos agitavam suas bandeiras entusiasticamente.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Bacillus Antraz e o Cipro [biotech IV]


O governo W. Bush foi capaz de bombardear o deserto desolado dos afegãos e, ao mesmo tempo, tornar-se refém de uma bactéria invisível: o antraz. Essa é, certamente, a imagem da guerra do século XXI, não a figura explosiva do World Trade Center [WTC]. Longe de apontar para a guerra do século XXI, a explosão e o colapso das torres gêmeas em 2001 não deixam de ser o último grito espetacular da guerra do século XX. O nosso destino parece muito mais estranho: o espectro de uma guerra ‘imaterial’, onde o invisível [vírus, venenos, bactérias] pode estar em qualquer lugar. Mesmo que na realidade material e visível nada aconteça, o universo conhecido passa a desmoronar e a vida a se desintegrar. Quando, dias após o 11 de setembro, nosso olhar se fixava sobre aquelas imagens do avião atingindo uma das torres do WTC, tínhamos de ver tudo aquilo vezes sem conta, ad nauseam. A queda das torres gêmeas pela tela da televisão mostra pessoas que parecem representar – representam a si mesmas – em um reality show.

Com o pânico provocado pelo antraz em outubro de 2001, o Ocidente teve uma primeira aproximação com essa ‘guerra invisível’, onde os cidadãos comuns ficam totalmente dependentes das autoridades públicas para saber o que realmente está acontecendo. Aconteceu que a caça paranóica do governo de W. Bush por armas de destruição em massa no Iraque tornou invisível a indústria do terror biológico norte-americano, mas ninguém se surpreendeu com a revelação de que o maior depósito de armas de destruição em massa fica nos EUA e não no Iraque. De fato, nesta ‘guerra imaterial’ há uma coordenação de uma ‘bomba biológica’ e uma ‘bomba informática’, sobretudo ao combinar as ciências da vida e as ciências da informação, conforme Paul Virilio em seu livro “A Bomba Informática”. Nessa nova guerra, os agentes vão assumir cada vez menos os seus atos, pelo menos a al-Qaeda não assumiu explicitamente os ataques de 11 de setembro nem a difusão de cartas com antraz.Slavoj Zizek afirmou, em seu livro “Bem-vindo ao Deserto do Real”, que a biotecnologia e a realidade virtual inauguraram uma combinação e ampliaram o horizonte de tortura.

Após o 11 de setembro, os EUA ainda se preocupavam com os ataques ao WTC e ao Pentagono, mas os meios de comunicação ainda estavam insatisfeitos com os resultados e começaram a espalhar o medo de que terroristas poderiam continuar seus ataques usando armas químicas e biológicas. O fato é que os jornalistas viram seus temores se concretizarem em uma onda de correspondências com antraz: cinco delas verdadeiras e milhares de outras fraudulentas. Essas incursões terroristas disseminadas pelas ondas de histeria sobre o antraz se espalharam até os cantos mais remotos dos Estados Unidos. Simultaneamente as imagens dos aviões, que colidiram com os centros econômicos e militares dos EUA, foram sobrepostas pelas ameaças de ataque biológico. Assim, as agências do correio começaram a mandar para quarentena os pacotes de biscoitos caseiros que recebiam; milhares de correspondências foram lacradas e armazenadas para testes futuros; diversos voos comerciais foram redirecionados e forçados a pousar quando era encontrado qualquer pó branco: substâncias triviais como pó para pudim de baunilha, açúcar, farinha, talco, conseguiram fechar escolas e fábricas, além de emperrar o ritmo dos negócios, descreveu Susan Willis em seu livro “Evidências do Real”. O antibiótico, Cipro, até então recomendado, foi encomendado pelas pessoas. Alguns norte-americanos compraram máscara de gás, mas os peritos afirmaram que os esporos do antraz poderiam penetrar com facilidade pelo filtro da máscara. Ordenaram-se aos norte-americanos que procurassem envelopes suspeitos: cartas sem remetente, combinações estranhas de selos, volumes injustificados, embrulhos inusitados e, sobretudo, o pó branco. Acompanhando o aviso, tantos outros trotes e alarmes falsos vieram. Com a finalidade de controlar a histeria crescente, W. Bush chegou a advertir que alarmes falsos de contaminação por antraz constituiriam uma ‘séria ofensa criminal’. Mas a paranóia atingiu seu apogeu quando a notícia de que o antraz havia causado mortes. O jornalista do Sun News na Flórida e o trabalhador dos correios de Nova Jersey foram algumas vítimas fatais, por serem alvos potenciais dos terroristas.

Todas as estratégias do governo norte-americano para se criar uma falsa sensação de segurança desmoronaram, quando Kathy Nguyen [funcionária de um hospital em Nova York] e Ottile Lundgren [idosa que morava na zona rural de Connecticut] foram mortas após inalarem antraz. O antraz mobiliza e combina, portanto, dois tipos de temores na área da segurança pública: o medo do envenenamento coletivo e o pavor dos efeitos poluidores. Decerto imaginávamos ter criado um novo mundo de agentes viróticos de destruição mais limpos e abstratos, como os códigos que se anexam aos e-mails do mesmo modo que se anexam ao DNA para causar falha generalizada no sistema. O golpe do antraz, entretanto, não nasceu no 11 de setembro nem com a carta que contaminou o escritório do senador Daschle. Em 1991, com a Guerra do Golfo, os americanos se preocuparam com as armas de destruição em massa no Iraque e com a hipótese de Saddan Husseim ter testado o antraz. Em 1997, um prato rotulado Anthraschs foi enviado para os escritórios da B’nai B’rith em Washington, que continha uma substância inofensiva: alarme falso. Desde muito tempo, portanto, o antraz esteve no pensamento ocidental. No Império Romano, o antraz dizimou inúmeros rebanhos ao longo do Mediterrâneo. No século XIX o antraz foi identificado como a Doença dos Coletores de Lã. Mais recentemente, tornou-se objeto de experimentos pelos nazistas, pela KGB e pelo aparato militar norte-americano. Enfim, o bacillus anthracis é uma das mais simples formas de vida, que vem atravessando séculos com a promessa de um apocalipse microbiano.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Clones, Genoma e Bomba Genética [biotech III]


A decifração do código genético visa a manipular a produção de seres vivos inéditos, como a mulher-farmácia, animais transgênicos, bactérias que comem petróleo, tomates que não apodrecem, resistem ao tempo, isto é, seres monstruosos, mas principalmente a desarticulação e rearticulação de processos inframoleculares, o rompimento das barreiras entre as espécies e dentro de cada espécie, a alteração, embaralhamento e artificialização das sequencias genéticas; trata-se de uma ampla definição encontrada no artigo "Código Primitivo – Código Genético" Laymert G. dos Santos. Sucessivas pesquisas genéticas se realizaram no final do século XX.

Em fevereiro de 1997, Wilmert e seus colaboradores do Roslin Institute em Edimburgo anunciaram a clonagem de uma ovelha, a Dolly, realizada com o DNA de uma ovelha adulta. Em julho de 1998, tornou-se pública a pesquisa de dois biólogos da Universidade do Havaí, Yanagimach e Wakayama, que realizaram a clonagem em massa de 22 camundongos, entre eles sete clones de clones. Em 1998, os cientistas da Portland State University conseguiram clonar macacos adultos, mas não conseguiram reproduzir depois as condições de sua experiência, de acordo com Manuel Castells, em seu livro “A Sociedade em Rede”. Ainda não foram divulgadas amplamente as experiências de clonagem humana, mas a clonagem de órgãos humanos pode até substituir os transplantes ao mesmo tempo em que essas pesquisas biológicas visam a induzir a capacidade auto-regeneradora em seres humanos. O progresso da engenharia genética cria a possibilidade de se controlar algumas doenças, identificar predisposições biológicas e nelas intervir, portanto alterando potencialmente o destino genético. Na década de 1990, enfim os cientistas já identificavam defeitos precisos em genes humanos específicos como fonte de diversas doenças. O ‘projeto genoma humano’ teve bilhões de dólares de financiamento do Departamento de Energia e do National Institute of Health dos EUA, com o objetivo de decifrar o DNA, numa corrida para alcançar finalmente a informação da vida e destinado a decifrar a totalidade do código genético, com o uso de máquinas especializadas em fazer o sequenciamento do DNA.

A informática é indispensável para as pesquisas que promovem um mapa físico do genoma humano, abre-se caminho para uma nova eugenia que propicie a seleção artificial da espécie humana. Deste modo, a anunciação oficial da ‘bomba genética’ só foi possível com a inaudita clonagem do homem a partir do controle informático do mapa do genoma humano. Com a combinação das ciências da vida e das ciências da informação, delineou-se uma ‘eugenia cibernética’ que resulta de um mercado único, que exigiu a comercialização de tudo o que vive e a privatização do patrimônio genético da humanidade, isto é, extrapola a política das nações – como nos laboratórios dos campos de extermínio. Busca-se industrializar o ser vivo por meio de procedimentos biotecnológicos em um projeto semi-oficial de reprodução do indivíduo em série, como se a engenharia genética tomasse o lugar da atômica para inventar também a sua bomba.

Através da informática e dos progressos da biotecnologia, as ciências da vida estão em condições de ameaçar a espécie, não mais pela destruição radioativa do ambiente, mas pela inseminação clínica, pelo controle das fontes da vida, pela origem do indivíduo. Assim como a ‘guerra total’ que se anunciou ao fim do primeiro conflito mundial, de 1939-1945, ameaçando, com Auschwitz e Hiroshima, não mais um inimigo, mas todo gênero humano, a ‘guerra global’ anunciada pelas grandes manobras da guerra da informação terá por base uma radicalização científica que ameaça de extinção o próprio princípio de toda vida individuada, não de extermínio da espécie humana, já que a bomba genética e informática constituem um único e mesmo aparato bélico, segundo Paul Virilio em seu livro "A Bomba Informática". ‘Eugenia cibernética’, ‘bomba genética’: eis a tecnologia eugênica, desde os seus fundadores até Hitler, culminando na cartografia do genoma humana.

Crê-se em novas formas de racismo que se firmaram na Europa, no fim do século XIX e início do século XX, referidas historicamente a novas práticas biomédicas que, embora tenham dado nascimento a certo tipo eugenismo, não se resumiram apenas ao racismo étnico, observou Michel Foucault em “Os Anormais”. Trata-se de um ‘tecnologia eugênica’ que se envolveu com o problema da hereditariedade, o da purificação da raça e o da correção do sistema instintivo dos homens por uma depuração racial. Certamente, a produção de ‘mortos-vivos’ nos campos de extermínio nazistas, quando o não-ariano transmutou-se em judeu, o judeu em deportado [Umgesiedelt], o deportado em internado [Häftling], até que no campo nazista alcançassem o seu limite último: o morto-vivo, o Muselmman. Nesse ponto, entre o Häftling e o Muselmann, a biopolítica do racismo vai além da raça e alcança um umbral em que já não é mais possível estabelecer cesuras entre os cidadãos de ascendência ariana e os de descendência não-ariana, como Giorgio Agamben analisou em seu livro “O que resta de Auschwitz”. No Estado nazista, o biopoder médico consegue ‘fazer viver’ os homens, fazendo-os viver mesmo quando estão mortos – o lugar de produção do Muselmann, a última substância isolável do continnum biológico: isento de qualquer consciência moral, sensibilidade, estímulos nervosos, uma monstruosidade vegetativa.

Euthanasie e Máquinas-micróbios [biotech II]


Depois de ter contribuído com o Império dos soberanos em sua colonização territorial-geológica de nosso planeta, o recente desenvolvimento tecnocientífico, biomédico, chega hoje à progressiva colonização dos órgãos e vísceras do ‘corpo animal’ do homem: a invasão da microfísica concluindo a da geofísica. Não se trata mais da invenção de sistemas hidráulicos, canais, pontes, aterros, megamáquinas que revolucionaram o deslocamento físico: ferroviárias, rodoviárias, linhas elétricas e cabeamentos. De um projeto exocolonizador a um processo endocolonizador. Nanotecnologia, micromáquinas, pois, que se preparam para equipar o que vive, desde a última revolução dos ‘transplantes’ que alimentam o corpo com técnicas estimulantes.

Hoje o lugar da high tech não está mais situado no ambiente planetário, mas no infinitamente pequeno locus das nossas vísceras e células, que compõem a matéria viva de nossos órgãos, portanto intrusão intra-orgânica nanotecnológica no seio do que vive e, assim, se segue a miniaturização dos motores, dos emissor-receptores e de outros microprocessadores, de acordo com Paul Virilio em seu livro “A Arte do Motor”. De uma só vez, trata-se de superexcitar o organismo do paciente, mas também de tranquilizá-lo, ou seja, ‘programar’ a intensidade de suas atividades nervosas e intelectuais como se programa o regime-motor de uma máquina qualquer. Não resta dúvida que a invenção do marca-passo cardíaco foi um dos pontos de partida desse tipo de inovações biotecnológicas, depois dos xenoimplantes de órgãos animais, além dos ‘tecnoimplantes’ que misturam o técnico e o vivente, onde não se acrescenta mais um corpo estrangeiro ao corpo do paciente, mas a heterogeneidade de um ritmo estrangeiro torna-se capaz de fazê-lo vibrar em uníssono com a máquina.

‘Máquinas-micróbios’ invisíveis que modificam os ritmos vitais e ocupam até mesmo os vazios do espaço intra-orgânico do indivíduo, acrescentando-lhe órgãos suplentes. Questiona-se como a troca standard de peças sobressalentes do domínio da mecânica pudesse se aplicar ao organismo: xenoimplantes e tecnoimplantes que reparam os estragos causados pela doença de tal ou tal órgão e aperfeiçoam as suas performances vitais. Sabe-se que o estado do além-comatoso é a condição ideal para a coleta de órgãos, o que implica a definição do momento exato da morte, para que o cirurgião que efetuar o transplante não seja acusado de homicídio. Em 1958, dois neurofisiólogos franceses, P. Mollaret e M. Goulon fizeram um breve estudo sobre o coma dépassé [além-coma], no qual a abolição total das funções de vida de relação corresponde uma abolição também total das funções da vida vegetativa. Em seu livro “Homo-Sacer”, Giorgio Agamben citou o caso do médico Norman Shumway, quando afirmou que um homem, cujo cérebro está morto, também está morto, porque este é o critério universalmente aplicável, afinal o cérebro é o único órgão que não pode ser transplantado, a despeito de ter sido processado em 1974, diante do tribunal californiano, por ter matado um homem. A morte torna-se, a partir de então, um epifenômeno da tecnologia do transplante.

Trata de uma morte, mas de uma ‘morte sem valor’, ‘indigna de ser vivida’, como se toda a valorização da vida implicasse uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser relevante politicamente e, como tal, pode ser impunemente eliminada. O governo do Reich emitiu uma medida que autorizava a eliminação dessa vida indigna, com especial referência aos doentes mentais incuráveis. Trata-se do Euthanasie-Programm für Unheilbaren Kranken que ocorreu em condições que podiam favorecer erros e abusos, por extrapolar-se em uma operação de extermínio em massa. Institutos existiam em Hadamer [Hesse], Hartheim [próximo a Linz] e em outros locais do Reich, como o Programa em Grafeneck, cujo instituto recebia a cada dia cerca de setenta pessoas escolhidas pelos vários manicômios alemães, entre os doentes mentais incuráveis, em idade variável de 6 a 93 anos. Os doentes eram mortos nas 24 horas seguintes à chegada a Grafenek, na maioria dos casos: [1] ministrava-se uma dose de 2cm de Morphium-Escopolamina; [2] introduz-se o indivíduo na câmara de gás. Em Hadamer, por exemplo, os doentes eram mortos com altas doses de Luminal, Veronal e Morphium, calcula-se que deste modo sessenta mil pessoas foram exterminadas. Hitler executou seu Euthanasie-Programm com valor estritamente eugenético, cujas leis de prevenção das doenças hereditárias e sobre a proteção da saúde hereditária do povo alemão representavam, para ele, tutela suficiente, mas a eutanásia não era particularmente necessária. Este programa representou um encargo organizacional significativo para uma máquina pública que estava totalmente empenhada no esforço bélico.

Se o soberano, o líder, o Führer é aquele que decide sobre o valor e a desvalorização da vida enquanto tal ou se compete a ele decidir qual a vida possa ser morta sem que se cometa homicídio, assinalasse, então, a integração entre a medicina e a política que começou a assumir a sua forma consumada no Reich nacional-socialista, enfim, isto implicou que a decisão sobre a vida se deslocasse das motivações políticas para um terreno ambíguo, onde o médico e o soberano parecem trocar seus papéis.